O Círculo dos Filhos
21:23
| Postado por
Thais Pampado
O blog Psychobooks está com um grande concurso cultural valendo vários kits de livros para
comemorar seu aniversário. Em um desses kits, a tarefa é escrever um texto
utilizando os títulos dos seis livros que o compõe: A
Filha da Minha Mãe e Eu, O
Reino, O Livro do Amanhã, Bruxos
e Bruxas, Manuscritos
do Mar Morto e Tipo Destino.
Quando
fui escrever o texto, que a princípio era para ter uns dois parágrafos, acabei
me empolgando e ele se estendeu muito mais do que o esperado, tanto que acabei
usando só parte dele para o concurso. De qualquer maneira, achei interessante
compartilhar o texto todo no blog! Boa leitura!
-x-
Naquela
noite, a Clareira Sagrada era iluminada pela pálida luz da Lua Cheia que
brilhava no céu. Uma leve bruma tomava conta do lugar, através da qual era
possível ver numerosos vultos, vestindo longas capas pretas, os capuzes
erguidos escondendo seus rostos. Eles formavam um círculo silencioso. Em seu
meio, havia apenas o toco de uma árvore há tempos cortada, no qual repousava um
grosso livro de aspecto antigo.
Apesar
do frio que fazia, nenhuma das figuras parecia
se importar. Imóveis, elas mantiveram sua formação por um longo tempo,
conforme a Lua subia no céu, até alcançar seu ponto mais alto, com o brilho
incidindo diretamente sobre a clareira. Nesse momento, uma das pessoas se
destacou do círculo, aproximando-se do livro no centro do local. Ela abaixou
seu capuz, revelando um homem de aparência altiva, com cabelos negros lisos até
os ombros e olhos azuis. Os outros membros do círculo imitaram sua ação,
descobrindo seus rostos, que variavam desde jovens até idosos. Todos
apresentavam a mesma coloração de olhos que o homem ao centro.
Este,
após todos terem revelado sua identidade, encostou suavemente a mão direita na
capa do livro.
-
Irmãos e irmãs – proclamou, e sua voz ecoou no silêncio da noite – Bruxos e
bruxas do reino de Saagha, filhos da Natureza e irmãos de sua Filha Suprema, a
Lua Cheia, nos reunimos aqui hoje para celebrar a junção de mais um ao nosso
círculo. Aproxime-se, Elero, filho da Natureza.
Um
garoto franzino, aparentemente o mais jovem dali, destacou-se dos outros e
dirigiu-se ao centro da clareira, parando do lado oposto ao homem com uma
expressão de ansiedade. O livro repousava entre os dois.
-
Seja bem-vindo, Elero, ao Círculo dos Bruxos de Saagha. Eu, Artros, protetor do
Círculo, convido-o a prestar seu juramento para o Livro do Amanhã, nosso guia
sagrado e guardião dos Manuscritos do Mar Morto, o registro dos destinos dos
filhos da Natureza. – disse o homem, retirando a mão que repousava sobre o
livro e em seguida agarrando a mão direita do garoto. – Você está pronto para
se unir a nós?
-
Estou – afirmou Elero, solene.
Sua
mão foi colocada sobre o livro, que emitiu um brilho esverdeado. Os integrantes
remanescentes na formação do círculo se aproximaram e deram-se as mãos de
maneira a fechar os buracos deixados por Artros e Elero. Sob a luz da lua e a
bruma, as pessoas pareciam tremeluzir.
-
Ó, Natureza, poderosa mãe que protege o reino de Saagha, e grande Lua Cheia,
que coloca seu olhar sobre nós – entoou Artros, com a voz repentinamente mais
profunda. Seus olhos, assim como o de todos os outros, voltaram-se para o céu.
– Concedam a Elero sua confiança e deixem que ele siga seu destino, determinado
desde o nascimento, de unir-se ao Círculo dos Filhos.
Dito
isso, Artros retornou para seu lugar no Círculo, juntando suas mãos às dos
outros. O brilho que emanava do livro ficou mais forte, e um vento fraco soprou
por entre as árvores. A tensão entre os presentes pareceu aumentar. Todos os
olhares agora se fixavam no jovem ao centro da clareira. Ao falar, as palavras
de Elero carregavam o peso da responsabilidade que ele assumia.
-
Eu, Elero, juro ser fiel ao Círculo dos Filhos e usar meus poderes com
sabedoria. Tomo todos aqui presentes como irmãos, e juro que por eles darei
minha vida. Juro defender o Círculo, e caso o mal sobrevenha e reste apenas a
Natureza, a Mãe da qual vim e a qual sirvo, a Lua Cheia, a Filha da minha Mãe,
e eu, juro que ainda assim não cessarei minhas obrigações e cumprirei meu
destino até o último de meus dias.
Ao
término da fala do garoto, o vento aumentou de intensidade, enquanto Elero
sentia o poder aumentando dentro de si. As pessoas ao seu redor ergueram os
braços para o alto, entoando um canto para os céus.
-
Grande Mãe Natureza, imponente Lua Cheia, nós lhes oferecemos nosso poder!
A
floresta, antes silenciosa, parecia estar viva; as árvores pareciam se mover ao
redor do círculo, e a luz que incidia sobre a clareira pareceu ficar ainda mais
forte. Elero fechou os olhos, a mão ainda posta firmemente sobre o Livro do
Amanhã, e repetiu junto aos outros:
-
Grande Mãe Natureza, imponente Lua Cheia, nós lhes oferecemos nosso poder!
E,
de repente, tudo cessou. As vozes se calaram, o vento parou de soprar, e o
livro não mais emitia brilho algum. Por alguns instantes, todos mantiveram um
ar solene, que indicava o fim da cerimônia. Então, lentamente, os bruxos e
bruxas foram se aproximando de Elero para lhe dar as boas-vindas, agora em tons
bem mais descontraídos. O garoto parecia afogueado com toda a atenção.
Artros
se aproximou do jovem e colocou a mão sobre seu ombro.
-
Seja bem-vindo ao Círculo, irmão.
Elero
sorriu.
-
É muito bom finalmente me juntar a vocês, irmão. – por fim, toda sua animação e
orgulho pareceram transparecer em seu rosto, e, abandonando toda a postura
séria, ele acrescentou – Tipo... destino melhor que esse não tem!
Artros
riu do jovem bruxo e em seguida afastou-se, deixando Elero usufruir da atenção
de ser o mais novo membro do Círculo dos Filhos.
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Oceano
22:14
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Thais Pampado
O
azul estendia-se até os pontos mais longínquos do horizonte. As ondas
erguiam-se majestosamente, impondo sua força sobre os mares. Até que chegava à
praia, pequena, somente um pouco d’água espalhando-se pela areia morna e
acariciando os pés daqueles que a admiravam. O som que chegava aos seus ouvidos
transmitia um sentimento indescritível.
A
garota virou-se, privando-se alguns segundos daquela visão linda que era o
oceano, para em vez disso olhar para o garoto ao seu lado, cujos cabelos loiros
eram açoitados pelo vento.
-
Eu te amo – sussurrou, juntando sua mão à dele e voltando o olhar para a imensidão
azul.
E
a resposta veio junto ao barulho das ondas.
“Eu também te amo.”
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Mini
16:33
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Thais Pampado
Tinha
monstros no armário.
Até que
cresceu.
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As últimas folhas do outono
14:20
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Thais Pampado
-Eu quero criar um
jardim. O nosso jardim.
O pequeno
portão de ferro rangeu quando foi aberto. Pedaços de tinta descolaram das
grades e colaram-se à mão do homem que o abrira, porém este não fez esforço
para limpá-los. Chamava-se Pedro. Ele era uma figura alta e magra, e usava um
sobretudo escuro para se proteger do frio daquela manhã de outono. Seus olhos,
de um azul extremamente claro, pareciam escurecer frente à paisagem que se
encontrava à sua frente.
Naquele espaço,
havia os restos de um jardim. Pedro se lembrava de como ele era antes: cheio de
cores, os aromas das flores preenchendo o ar, a grama macia cobrindo o chão. E
os risos dela sempre ecoando. De Marissa.
Foi ela que
teve a ideia de eles criarem um jardim. Ambos gostavam de mexer com plantas, e
aquele seria o lugar deles. Quase todos os dias iam para lá. Acompanharam as
flores surgirem e tomarem conta do espaço, as mudas de árvores ficarem mais
altas que eles e começarem a dar frutos, as folhas caírem no outono e
ressurgirem.
Costumavam
deitar-se na grama, conversando sobre bobagens, se beijando e rindo. Marissa
era uma pessoa alegre; seu riso era fácil e estava sempre pronto a sair de seus
lábios. Todos os dias, enquanto cuidavam do jardim, Pedro ficava ouvindo o riso
de Marissa.
Sempre achou
que aquele riso era uma parte do jardim. Ele estava entranhado nas folhas, nas
flores e nos frutos; era o que lhes conferia a vida e a beleza.
E então,
Marissa foi embora.
Levou
consigo seu riso, e Pedro ficou sozinho. Sabia que ela nunca mais retornaria ao
jardim deles, e por muito tempo também não voltou lá. Até que, um dia,
retornou, na esperança de encontrar algumas lembranças esquecidas.
Foi nessa
manhã fria, a última do outono, que se deparou com as flores murchas, a grama
ressecada e as árvores vazias com suas folhas amareladas caídas no chão. Não
havia mais cor, e o aroma no ar era agora o de abondono e tristeza; o jardim se
tornara um cemitério.
Pedro andou
por entre os resquícios do que um dia fora um lugar de felicidade, sentindo as
folhas estalarem sob seus pés. Seus olhos eram fendas de dor ao observar a
marca da perda de Marissa. Ele quase podia ouvir o fantasma de seus risos
ecoando, algo perdido para sempre. Ele tinha razão; o riso de Marissa, sempre
ecoando, era o que dava vida ao jardim. Sem ele, não havia mais nada.
Pedro parou
em frente ao que um dia fora uma macieira, onde algumas poucas folhas resistiam
em um galho mais baixo. Estavam já amareladas, fracas. O homem aproximou-se, e
com um puxão arrancou-as dali. Segurou-as firmemente na mão, sentindo-as
estalarem e se quebrarem entre seus dedos.
Então foi
embora do jardim, desta vez para sempre, deixando apenas uma trilha com as
últimas folhas do outono atrás de si.
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Professor
12:01
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Thais Pampado
Passava seus
dias dando aulas sobre a Terra para os alunos verdinhos,
porque era seu
dever instruir os pequenos alienígenas.
Ensinando,
ensinado, ensinatório.
Ensanatório?
Insano.
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Tempo Contado
22:28
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Thais Pampado
Ele vivia no relógio.
Tic-tac. Tic-tac.
Às sete da manhã acordava.
Às sete e meia, saía para o trabalho.
Os olhos sempre se voltando para os ponteiros no relógio de pulso.
Tic-tac. Tic-tac.
Almoço ao meio dia.
Duas horas da tarde, voltava ao escritório.
O relógio na parede ritmando seus movimentos.
Às cinco terminava o expediente.
Tic-tac. Tic-tac.
O programa a que gostava ia ao ar às oito da noite.
O jantar ficava pronto às nove.
Errou na comida? Algo instantâneo.
Nada de atrasos.
Às dez ia para a cama.
Tic-tac. Tic-tac.
Caía no sono no mesmo instante.
Nada de atrasos.
Tic-tac. Tic-tac.
Afinal, era só mais um mecanismo do relógio.
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O Reflexo no Espelho
19:47
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Thais Pampado
I
Se Beatrice tivesse que escolher
uma palavra para descrever a aparência do espelho, seria comum. Suas dimensões eram grandes o bastante para que a
refletissem de corpo inteiro, mas apesar de seu tamanho a moldura nada tinha de
especial; era de simples madeira lisa, já um pouco envelhecida pelo tempo, sem
qualquer adorno ou entalhe. Era como qualquer outro espelho que poderia se
encontrar em qualquer outro antiquário da cidade. A mulher o achou no Relíquias do Tempo, nos fundos da loja,
um tanto escondido por trás de alguns tecidos e pilhas de quinquilharias.
Pensou, enquanto pagava um preço demasiado baixo pelo objeto, que aquele
espelho comum combinaria com o resto
da decoração comum do seu quarto.
E o levou para casa naquele
mesmo dia.
II
- Aquele bastardo, asqueroso,
pervertido!
A porta emitiu um estrondo ao
ser batida com demasiada força. Beatrice entrou em casa em um rompante,
resmungando de raiva enquanto atirava as pastas que trouxera do trabalho sobre
o sofá da sala e se dirigia ao seu quarto.
- Quem ele pensa que é, poderia
conseguir uma promoção se colocasse essa boquinha para um bom uso,
francamente! Chefe ou não, não passa de um pervertido.
A mulher jogou-se em sua cama,
com os cabelos espalhando-se sob si. A visão de Jenkins, seu chefe no
departamento de relações públicas na empresa em que trabalhava, não saía de sua
cabeça. O homem já passava dos cinquenta anos, tinha os cabelos rareando e sua
cara era tão redonda quanto sua enorme barriga. Além de ser rude todas as
manhãs, tratando-a como uma inútil mesmo que ela trabalhasse até não aguentar
mais, agora vinha com essa! Como se ela fosse se rebaixar a tal ponto.
-
Eu o odeio!
Bufando, Beatrice sentou-se na
cama. Encarou o espelho que havia adquirido alguns dias atrás, recém-colocado
exatamente à frente de onde estava, do outro lado do quarto. Ele mostrava uma
mulher de vinte e três anos, de longos e espessos cabelos ruivos, pele pálida
salpicada por sardas e olhos verdes que brilhavam de raiva. Encarou seu
reflexo, idêntico a ela em todos os detalhes e movimentos... até que sua imagem
se levantou e pareceu andar em sua direção.
Beatrice piscou com força e
sacudiu a cabeça. Continuava sentada na cama, sentia a maciez do colchão sobre o qual estava. Ainda assim, seu eu
refletido estava de pé, aproximando-se. Quando quase parecia poder saltar para
fora do espelho, parou.
- Sabe o que quer fazer, Bea.
A voz era a de Beatrice, porém
vinha da imagem e soava como um eco. A mulher na cama tinha os olhos
arregalados. Isso é uma alucinação. O dia
hoje realmente me estressou.
- Por que não pede demissão?
Era aquilo que pairava em sua mente com grande
frequencia. Ver-se livre de Jenkins era uma ideia tentadora, porém...
- Não posso pedir demissão. Dependo desse emprego,
sem ele perco a casa, perco tudo. Não conseguirei ganhar um salário maior em
nenhum outro lugar.
Estou
discutindo com uma alucinação. Preciso descansar.
Beatrice sabia que deveria ir tomar um banho e se
deitar, mas estava compelida a responder àqueles ecos. Pareciam tão reais, e a
cada palavra parecia estar extravasando um pouco da raiva que havia acumulado
desde que começara a trabalhar com Jenkins. Talvez sua mente simplesmente
estivesse precisando de uma maneira de se livrar de tudo aquilo.
Seu reflexo deu uma risada, que soou como um sopro de
vento frio.
- Está parecendo que tem medo de Jenkins. Não quer
enfrentá-lo. Talvez, ah, talvez você esteja pensando na proposta dele, ah, sim.
Uma promoção, ganharia mais dinheiro, e em troco de tão pouco, não é mesmo? Só
teria que virar a putinha de Jenkins.
- Nunca faria isso! Eu o odeio! Quero vê-lo morto!
Beatrice berrou essa última parte, e avançou em fúria
em direção à imagem que caçoava dela. Parou com o punho a centímetros de dar um
soco em sua face, lembrando-se de repente de que aquilo era um espelho, e que
ela com certeza estava imaginando coisas. Ouviu uma risada ecoar mas, depois de
piscar algumas vezes, o que viu foi o seu próprio reflexo, com o peito se
movendo para cima e para baixo com sua respiração ofegante, o punho erguido e
uma expressão de ódio no rosto, exatamente a posição em que se encontrava.
Relaxou o corpo e deu as costas para o espelho. Um bom banho e minha cama. É disso que eu preciso.
III
No dia seguinte,
Beatrice acordou se sentindo mais relaxada do que nunca. Uma espécie de leveza
a acometia, como se um grande peso tivesse sido retirado de suas costas. Embora
não soubesse a exata origem daquela sensação, estava feliz por ela. Há tempos
não se sentia assim.
Arrumou-se como fazia todos os dias, tomando uma
grande xícara de café antes de sair para o trabalho. O encontro com Jenkins na
tarde anterior ainda pairava em sua mente, porém não deixava aquela lembrança
amargar sua manhã.
O escritório ficava a apenas meia hora de distância
de sua casa. Dirigia pelas ruas conhecidas que indicavam estar próxima de seu
destino quando encontrou um estranho tumulto. Carros estavam congestionados e
várias pessoas corriam para um local alguns metros à frente; já havia uma
pequena multidão parada observando o pequeno prédio cinza que era tão conhecido
por Beatrice – a sede da empresa em que trabalhava.
Descendo de seu próprio carro quando este se
encontrou impossibilitado de avançar, a mulher aproximou-se para ver o que
estava acontecendo. Notou que diversos carros de polícia cercavam a área, e o
grupo de curiosos era impedido de se aproximar da entrada do prédio por uma
fita amarela. Atrás dela, dois oficiais uniformizados tentavam acalmar e
dispersar a multidão.
Bea empurrou, deu cotoveladas e levou alguns
xingamentos até chegar à fita de segurança. Tentou chamar a atenção de um dos
policiais.
- O que está acontecendo? Eu trabalho aqui! – gritou
o mais alto que podia, porém sua voz se perdeu em meio à todas as outras que
faziam o mesmo. Um flash de luz disparou ao seu lado, e ao se virar deparou com
um repórter de câmera na mão. Cutucou-o e ele se virou para ela com uma
expressão carrancuda.
- Que foi? Não tá
vendo que eu tô trabalhando?
- E eu gostaria de estar também, mas parece que a
polícia interditou o meu prédio. – Beatrice respondeu sarcasticamente,
detestando o ar de presunção do homem. – Sabe o que houve?
De má vontade, ele respondeu.
- Assassinato. Encontraram um cara morto a facadas no
segundo andar. Eu vi quando o corpo foi retirado. Já estava dentro do saco, mas
o cara com certeza era grande. – de
repente, pareceu relembrar o que fazia ali, e da oportunidade que tinha de
obter informações. – Você disse que trabalha aqui. Sabe quem era? Conhecia?
Pode imaginar quem fez isso?
Beatrice gelara por dentro ao escutar as primeiras
palavras do repórter. Não pode ser.
Ignorando a torrente de perguntas que ele lançava em
sua direção, esgueirou-se para longe do tumulto, e antes que percebesse já
estava correndo até seu carro.
Não, não, não.
É uma coincidência, só isso. Jenkins não pode estar morto.
Havia se esquecido da alucinação da noite anterior,
mas agora se lembrava nitidamente. Aquela sensação de leveza sumira,
substituída por algo mais frio, como se algo nojento estivesse se espalhando em
suas veias.
Ela havia dito as palavras. Quero vê-lo morto.
Mas não queria realmente,
havia falado aquilo por falar, em um momento de raiva. Não era? Ela nunca mataria
ninguém, e proferira aquilo basicamente para si mesma. Não havia mais ninguém
no quarto para ouvi-la.
Havia o
espelho, e a pessoa lá dentro.
Beatrice retomou o caminho para a casa pisando fundo
no acelerador. O medo retorcia seu estômago em nós. Repetia diversas vezes alucinação, coincidência, alucinação, coincidência como um mantra. Tentava em
não pensar naquela imagem e em seus ecos, no modo como parecera real. Seria capaz de sair do espelho?
Estacionou às pressas na garagem de sua casa. Suas mãos
tremiam enquanto ela tentava acertar a chave na fechadura da porta de entrada,
mas esta por fim se abriu. A luz entrava pelas janelas da sala, recaindo sobre
os poucos móveis, porém o local parecia estar mais escuro do que nunca. O ar
pareceu estar suspenso com um silêncio quase palpável, com qualquer vestígio de
som do lado de fora abafado quando a porta se fechou.
Beatrice andou lentamente em direção ao seu quarto.
Parou em frente à porta ligeiramente entreaberta, respirando fundo e temendo o
que quer que pudesse encontrar do outro lado. Depois de segundos que pareceram
séculos, seus dedos se estenderam para a madeira e a empurraram.
Sua cama estava como a havia deixado naquela manhã,
com os lençois bem arrumados. Virou-se, e lá estava o espelho, como ontem. Lá
estava ela, cabelos, sardas, olhos.
Mas seus olhos eram vermelhos e suas mãos estavam
sujas de sangue.
Beatrice recuou, berrando, até que atingiu a cama e
caiu sentada sobre ela. Estendeu suas mãos à sua frente em desespero, vendo-as
limpas como sempre, porém seu reflexo as tinha rubras.
- Não quer encarar seu trabalho, Beatrice? –
perguntou o espelho.
- Eu não fiz nada, não fiz nada – repetiu a mulher.
Seu coração pulava descompassado, e parecia ter engolido um bloco de gelo.
Sentia como se o ar a estivesse pressionando por todos os lados, pesado.
- Fez, sim. Era muito fraca para fazer sozinha, mas
você me pediu e eu te ajudei, não vê? – a Bea-imagem agachou-se e retirou um
emaranhado de roupas de baixo da cama. Depositou-as exatamente ao lado de onde
a Beatrice real estaria sentada, enquanto esta fechava os olhos com força,
lágrimas escorrendo pelo seu rosto. – Olhe, Beatrice. Olhe o que você fez.
Lentamente, a mulher abriu os olhos e baixou-os para
a cama. Um soluço estrangulado saiu por sua garganta quando viu as roupas que
reconhecia como suas amontoadas ali, com diversas manchas daquele vermelho
escuro. E, aninhada em seu meio, reluzia uma faca de cortar carne com a lâmina
ensanguentada.
- Está livre agora. – ecoou o espelho. - E eu diria
que seu ódio foi um ótimo alimento. Desde que prenderam meu espírito nesse
espelho, é difícil encontrar uma especiaria como tal, há anos não consigo nada
tão forte... tenho que agradecer por ter me retirado daquele antro de
velharias. Posso estar presa nesse espelho há muito tempo, mas não quer dizer
que me considere uma relíquia.
Aquela risada maligna encheu o aposento, e Beatrice
encarou seu reflexo.
-O que me fez fazer? – pretendia que sua voz saísse
como um desafio, mas mais pareceu um choramingo.
- Nada que você não quisesse. Disse que queria ver
Jenkins morto, ele está morto. Queime
essas roupas e se livre da faca e pronto, não haverá mais problemas. Você está
sem seu chefe pervertido, e eu repus minhas energias. Ambas tivemos nossos
desejos atendidos, todos saem felizes.
Era como se Beatrice tivesse seus olhos verdes
grudados nos vermelhos do monstro no espelho. Aquele não era seu reflexo, sabia
agora, nem uma alucinação. Aquele espelho não era comum.
Ela havia matado um homem. Meu Deus, era uma
assassina! Culpa do espelho. Maldito o
dia em que decidi entrar naquela loja!
A polícia a encontraria, descobriria a verdade, ela
devia ter olhos de assassina agora. Tinha suas mãos sujas de morte.
O desespero crescia dentro de Beatrice. O
monstro-reflexo alargava cada vez mais o seu sorriso.
- Não tente lutar contra isso, Bea. Sabe que, bem lá
no fundo, você está satisfeita. Está feliz que tenha me encontrado.
- NÃO!
Beatrice levantou-se de um salto, agarrando a faca em
meio às roupas, e avançou com fúria para cima do espelho. Um flash de
recognição passou por sua mente, e se viu naquele mesmo correr furioso, o metal
em suas mãos, com um homem gordo gritando por misericórdia à sua frente...
A faca atingiu o espírito em meio aos olhos, e tudo
se apagou.
IV
- Moça, tem certeza que não aceita nenhum tipo de
pagamento? Esse espelho deve ter te custado caro. Trabalhamos com orgulho e
garanto que podemos lhe pagar o que pedir.
O senhor que falava tinha a voz roufenha, e devia
estar próximo de seus setenta anos. Estranhava aquela jovem mulher ruiva que
adentrara seu antiquário oferecendo um grande espelho antigo, emoldurado em
madeira, por nada em troca. Além disso, não tirara os óculos escuros mesmo
depois de entrar na loja.
Ela lhe abriu um sorriso doce.
- Não se preocupe. Tenho este espelho há tempo
demais. Acho que é hora de me separar dele. – a mulher riu. - Tenho certeza que
a Velhas Lembranças encontrará um
novo dono para ele.
O senhor hesitou por um instante, mas então
consentiu.
- É muito gentil. Se é assim, aceitarei o espelho.
Posso mandar buscá-lo esta tarde, se for possível.
- Seria ótimo.
A mulher lhe passou o endereço e, com mais um
sorriso, deixou a loja. Entrou em seu carro e dirigiu calmamente para sua casa.
Assim que chegou, dirigiu-se para o quarto, onde o grande espelho estava ainda
pregado à parede. Retirou os óculos escuros.
Seus olhos vermelhos encaram os verdes da mulher
refletida, que tinha as mãos cerradas em punho se agitando, como se tentasse
quebrar o espelho de dentro para fora.
- Olá, Beatrice.
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O Homem
17:58
| Postado por
Thais Pampado
O Homem sempre vinha durante a
noite.
Na primeira vez em que ele apareceu,
o relógio marcava duas horas da madrugada. Miguel tinha sete anos; era pura
inocência e curiosidade em seu pequeno envoltório de menino. O quarto era
fracamente iluminado pela luz da lua que entrava pelo vidro da janela fechada,
e os objetos lançavam sombras em ângulos estranhos pelas paredes. O Homem
surgiu de repente, uma sombra mais densa destacando-se das outras sem emitir
som algum. Não era possível ver seu rosto ou qualquer outra parte de seu corpo,
pois o mesmo estava coberto por um longo manto preto; no entanto, sua presença
foi acompanhada por um sopro de vento gelado que não poderia ter vindo do lado
de fora.
Miguel assustou-se com a aparição
repentina, mas não tentou afastá-la nem gritou, o que talvez tenha sido uma
prova de sua ingenuidade infantil. O menino apenas apertou mais os cobertores
em torno de si e ficou espiando o desconhecido. Alguns minutos se passaram e
nenhum deles se moveu. O ar estava tenso e carregado com uma espécie de
antecipação – como se algo importante estivesse para acontecer. E estava, só
que Miguel não sabia disso.
Se soubesse, e
soubesse o que aquilo iria
desencadear, não teria deixado o Homem falar.
- Tens meu corpo, garoto?
A voz que saiu por debaixo do capuz
era desgastada e áspera, como se fosse utilizada uma lixa para raspar a
garganta. Ao responder, a voz de criança de Miguel soou extremamente aguda,
embora ainda fosse pouco mais do que um sussurro.
- Qual o seu nome? E por que você fala
estranho?
- Nome eu tinha quando era vivo, não
o tenho mais. Tens meu corpo, garoto?
Sem entender, Miguel continuou em
silêncio, os olhos fixos na sombra à sua frente, os dedinhos agarrados
firmemente ao cobertor. O Homem aproximou-se da cama e o menino encolheu-se
ainda mais com a súbita intensificação do frio.
- Estás no local onde meu corpo me
foi tomado – queimado, torturado, mutilado. Terás de devolvê-lo, de uma maneira
ou de outra.
Dito isso, o Homem desapareceu,
deixando para trás um menino com lágrimas de medo escorrendo pela face.
--
O Homem retornou exatamente um ano após
sua primeira aparição. Dessa vez, Miguel estava dormindo, porém o frio fez com
que despertasse. Quando percebeu aquela figura em seu quarto novamente, seu
primeiro reflexo foi preparar-se para gritar, mas ao inspirar sua garganta se
fechou e ele começou a engasgar.
- Permaneça calado.
A ordem foi pronunciada pela voz
rouca com força e ódio. O menino voltou a ser capaz de respirar, mas obedeceu.
Seu corpo foi tomado por tremores involuntários, seus dentes rangiam, as unhas
se cravaram na palma da mão. Os olhos se fecharam e ele tentou se convencer de
que aquele era um pesadelo. Não era real, não era real, não era real...
O Homem postou-se ao lado de Miguel.
A parte de seu manto que corresponderia ao braço se ergueu e cobriu os olhos do
garoto, cujo corpo imediatamente enrijeceu. Dois olhos vermelhos como fogo
surgiram no Homem.
Ao acordar na manhã seguinte, Miguel
estava cego.
--
O Homem vinha todos os anos, sempre
na mesma data. Os olhos vermelhos foram apenas o começo da cobrança prometida
por sua primeira visita. Na terceira vez que ele apareceu, tocou os ouvidos de
Miguel, que perdeu a audição. Na quarta, foi a boca, e o garoto perdeu a voz.
Na quinta e na sexta, perdeu o movimento dos braços, e nas próximas duas, ambas
as pernas ficaram paralisadas. Quando o Homem surgiu pela nona vez, o menino
inocente de sete anos não era nada além de uma casca na forma de um garoto de quinze,
funcional apenas pelo bombear do coração e pelas ondas cerebrais.
A chegada foi pontuada pelo
costumeiro frio, mas trouxe também um cheiro putrefato de carne em
decomposição. Não havia mais manto, somente um amontoado de carne e pedaços de
pele carcomidos por vermes, que vinha para uma última visita.
O Homem esticou os dedos pegajosos e
tocou o peito do garoto.
A
risada rouca do morto-vivo ecoava no quarto quando o coração de Miguel parou de
bater.
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O Corvo
21:32
| Postado por
Thais Pampado
Desde que eu era pequeno, caçar era meu hobby favorito. Meu pai me apresentou a
essa atividade assim que decidiu que eu tinha idade o bastante para manejar um
rifle – eu estava com sete anos, na época. Marco Dolan era um homem robusto,
sempre com a barba por fazer e cujas roupas sempre exalavam um cheiro
característico, uma mistura de terra e cigarro. Eu sempre sabia que meu pai
estava por perto somente pelo olfato, antes mesmo de vê-lo ou ouvi-lo. Ele era
um homem rígido. Sabia impor suas regras na casa, e depois das primeiras surras
por desobediência, aprendi a não contrariá-lo. Contanto que eu andasse na
linha, ele era como qualquer outro pai, ansioso por passar ao filho a tradição
dos homens da família – a caça. Eu, logicamente, expressava tanta ansiedade
quanto ele, e sempre o admirava quando ele chegava de uma caçada, com suas
botas e roupas sujas de terra e grama, o rifle seguro entre os dedos e os
animais abatidos (eram aves, normalmente) dentro de sacas ensanguentadas.
Foi uma alegria para mim, então,
quando Marco disse que eu estava pronto. Ganhei meu próprio rifle, cuja maneira
de usar ele me ensinou em pouco tempo. Logo, eu o acompanhava durante as
temporadas – sempre íamos aos arredores do Lago Cristal, em uma floresta que
não ficava tão longe da fazenda onde morávamos.
Essa era a grande diferença entre eu
e meu pai. Aquela invariabilidade me entediava. Queria ir a lugares diferentes,
desconhecidos; queria uma aventura ou um desafio. A única vez em que me atrevi
a expressar aquelas ideias, tomei um tapa e um conselho:
- Desafios vão te meter em
problemas, Joe. Escute o que eu digo, garoto. Chega de ideias; caçar no Cristal
já é aventura o suficiente para você.
As coisas continuaram assim por
muitos anos. Mesmo quando me tornei independente e deixei de morar na fazenda,
nunca me atrevi a caçar fora daquele lago, até nas vezes em que ia sem meu pai.
Não ousei desobedecê-lo; é difícil perder certos hábitos. Foi no ano de 1996,
no entanto, que Marco Dolan sofreu o ataque cardíaco que o matou.
A notícia foi um choque para mim.
Passei alguns meses em profundo luto, mas então comecei a enxergar aquilo de
uma outra maneira. Eu estava livre, agora. Livre para as aventuras e os desafios
que há tanto me haviam sido negados. Era hora de começar a viver.
Foi então que decidi tirar um ano
para me dedicar inteiramente à caça. Pedi demissão no trabalho. Eu tinha uma
pequena fortuna acumulada, fruto de anos de trabalho duro e poupança, que
serviriam para me sustentar durante aquele período. Comprei equipamentos novos,
mapas de lugares remotos e distantes, pesquisei na internet por points que me permitissem manter uma
atividade constante durante o ano inteiro. Alguns dias depois de minha decisão,
eu estava em meu carro, levando comigo apenas uma pequena mala com algumas
roupas, o equipamento e algum dinheiro.
Ah, como aquilo era maravilhoso!
Viajando constantemente, hospedando-me em hotéis e pousadas em locais remotos,
enfrentando matas e pântanos. Não me detinha somente em aves, e minhas presas
passaram a ser as mais variadas. Uma vez cheguei a matar um jacaré. Me enchi de
orgulho, e não pude deixar de pensar em meu velho pai e seu conselho... ele
estava completamente errado. O Lago Cristal não era aventura o suficiente para
mim. Isso, sim, era aventura de
verdade!
Eu já estava há alguns meses
naquelas viagens quando reparei no corvo pela primeira vez. Talvez ele
estivesse me acompanhando desde o início, porém eu nunca o havia visto
realmente até aquele dia. Eu estava na Floresta Galis, espreitando por entre
ramos em busca de algum animal desavisado, quando um brilho vermelho me chamou
a atenção nos galhos mais altos de uma árvore um pouco à frente. Lentamente,
com o mínimo de ruído possível, direcionei meu rifle naquela direção e
estreitei o olhar para enxergar melhor. A floresta era densa, e um tanto quanto
escura, portanto levou um certo tempo até eu realmente divisar o que estava
vendo.
Era um corvo, porém não podia ser um
corvo comum. Ele era pelo menos duas vezes maior do que a ave normal, e apesar
disso suas penas negras fundiam-se com o cenário de maneira a deixá-lo quase
invisível. Um arrepio me percorreu a espinha quando notei seus olhos, que não
eram negros, mas de um vermelho intenso – era o que havia me chamado a atenção
inicialmente. Estavam voltados para mim, embora eu fizesse o máximo para não
emitir o menor ruído. Segurava o rifle firmemente em minhas mãos, e deveria ter
atirado. Porém, eu não conseguia me concentrar em nada além daqueles olhos que
me encaravam. Pareciam... inteligentes, quase malévolos. Como alguém que está desejando,
esperando algo. Havia alguma força de
atração neles, hipnotizante e aterrorizante ao mesmo tempo. Eu queria saber o
que era, mas também queria me virar e sair correndo. Enfrentava esse dilema
quando um estalo quebrou meu transe. O corvo soltou um grasnido alto e rouco e
levantou vôo, enquanto eu me virava em direção ao som, com o coração aos pulos.
Era um pequeno cervo, que provavelmente
havia pisado em algum galho caído e o quebrado, emitindo aquele estalo. Ao
perceber toda aquela movimentação, no entanto, ele imediatamente partiu
correndo, antes mesmo de eu me recuperar o bastante para mirar.
Eu estava trêmulo e ofegante, como
se houvesse corrido uma maratona. Dei uma última olhada para cima, mas não
encontrei mais aqueles olhos vermelhos e senti uma pontada de alívio. Decidi
retornar ao hotel e encerrar o dia mais cedo. Aquele corvo me deixara inquieto,
e o melhor a fazer seria descansar.
Assim que saí da floresta e me
encontrei em local aberto, sob a luz do sol, minha mente começou a duvidar do
que eu vira. Devo estar muito cansado.
Posso ter imaginado o bicho, estava escuro. Ou então pode ser apenas uma
espécie de corvo que eu não conheço, maior e de olhos vermelhos. Só uma ave
comum.
Durante os quinze minutos de carro
até o hotel, repeti aquilo para mim mesmo, de modo que ao chegar em meu pequeno
quarto alugado, já havia me convencido de que nada de anormal acontecera. Tomei
um banho e me sentei à janela para observar o crepúsculo antes de ir para a
cama. Tinha uma longa viagem no dia seguinte.
Aquela noite, tive pesadelos com
olhos vermelhos de uma grande ave preta, seu bico afiado sujo de sangue.
Acordei com um grito, suado, sob o som de uma intensa chuva que martelava as
janelas. Somente alguns minutos depois, após tomar um copo d’água, consegui de
fato me acalmar. Eram três e vinte da madrugada. Decidi ignorar o sonho –
aquilo era um medo irracional, uma coincidência, não relacionada com o
acontecido da floresta. Virei-me de lado decidido a dormir novamente.
Quando acordei na manhã seguinte, o
vento ainda assobiava, embora a chuva houvesse se reduzido a uma leve garoa.
Pensei que, se o tempo ruim permanecesse por muito mais, talvez atrapalhasse
minha próxima caçada, porém foi com renovada energia que entrei em meu carro
rumo à próxima floresta; que chovesse! Seria um desafio novo, afinal.
Foi enfrentando algumas pancadas de
água um pouco mais intensas, intercaladas com aquela garoa fina, que cheguei na
Pousada do Sol ao cair da noite. Era um local aconchegante, tipicamente
interiorano, embora um tanto quanto vazio e com aspecto de que não havia muito
movimento. Aquela era uma área bastante isolada, e espantava-me o fato de a Pousada
sobreviver por ali.
Fui atendido por um senhor todo
enrugado, quase raquítico, com ralos cabelos brancos. Sua voz soava tão
desgastada quanto ele parecia.
- Boa noite, meu jovem. Posso
ajudá-lo?
- Gostaria de alugar um quarto por
uma noite. O mais barato.
- Um instante, já pegarei a chave
para você. Me desculpe a pergunta, mas o que faz em um lugar como esse com essa
chuva? Raramente temos clientes nessa época do ano.
- Vou para a Floresta Antiga,
amanhã. Sou caçador.
O velho parou por um instante com a
mão estendida para um painel de chaves atrás do balcão, e voltou seus olhos
para mim. Seu olhar fez com que eu me sentisse inquieto novamente; as pupilas
vermelhas do corvo passaram em um flash por minha mente. Tão rapidamente quanto
ele se virara, no entanto, voltou sua atenção para as chaves e aquela estranha
sensação desapareceu.
- Ora, meu jovem, não devia caçar
com esse tempo. A Floresta Antiga tem um terreno muito perigoso, muitos
barrancos e rochas em alguns trechos. Já tivemos alguns... acidentes bem desagradáveis por lá.
Havia um tom contido em sua voz,
como se houvesse algo por trás daquilo que ele falava. Não dei muita
importância. Eu estava atrás do perigo, não era esse o motivo de ter escolhido
aquele lugar entre tantos na internet? Exibi um sorriso para meu atendente.
- Eu sei. Tomarei cuidado. Estou
acostumado com a mata.
Ele suspirou e me estendeu uma
pequena chave enferrujada.
- Não com esta... – essas primeiras palavras saíram em um murmúrio – Mas já
que você diz. Aqui está, quarto 65. São 40 reais. Pagamento só em dinheiro, por
favor.
Remexi em meu bolso e retirei dali
algumas notas, que entreguei ao velho.
- Muito obrigado.
Deixei aquele estranho senhor no
balcão e me retirei para o quarto. Era extremamente rústico, mas eu não
procurava o luxo, então ele servia ao meu propósito. Como havia enfrentado a
estrada durante o dia inteiro, não demorei a dormir.
Não tive pesadelos essa noite, e
acordei ao nascer do sol. A chuva havia parado, mas o céu ainda exibia um tom
acinzentado salpicado por nuvens escuras. O café-da-manhã da Pousada já havia começado a ser
servido – esses lugares sempre se adequavam aos horários daqueles que
normalmente o frequentavam – e a comida era farta e deliciosa. Não vi o velho,
somente um jovem rapaz que deveria ser seu ajudante; não poderia ter mais do
que vinte anos. Não avistara nenhum outro hóspede quando finalmente entrei em
meu carro, já vestido e preparado para a caça.
Meia hora depois, estacionei em
frente ao começo de uma floresta tão densa quanto aquela em que eu estivera
dois dias antes. A Floresta Antiga era extensa, fechada e úmida; um local não
muito conhecido e cujo terreno dificultoso impedia que muitos caçadores se
aventurassem por ali. Quando li sobre ela em um site, sabia que era o local
perfeito para mim. Apanhei meu rifle e, tomado por antecipação, adentrei a
floresta.
A primeira coisa que notei foi o
cheiro abafado, de terra molhada e vida selvagem. Eu mal havia penetrado alguns
metros quando a escuridão quase total me encobriu; agucei minha visão e os
outros sentidos para poder me movimentar. As árvores pareciam se curvar para
cima de mim com galhos retorcidos, e o solo úmido afundava maciamente sob
minhas botas. Todo e qualquer som parecia ter sido abafado. O silêncio era
sepulcral.
Havia algo naquela floresta. Seu
nome passava a fazer mais sentido: era como se houvesse uma presença,
espreitando em cada canto, nas árvores, no chão e no ar, algo antigo, poderoso
e atemporal.
Não faço ideia de quanto tempo
passei ali, sem ver nenhum indício de um animal para tomar como minha presa. Me
locomovia devagar, devido à precariedade do solo sob meus pés. Perdi a noção
das horas, sequer sabia se era dia ou noite naquela escuridão. Só havia eu,
meus sentidos, e a floresta. A caça.
E, então, eu o vi.
Ele estava empoleirado da mesma
maneira que antes; em uma árvore um pouco mais afastada. O vermelho de seus
olhos parecia ainda mais forte dessa vez, e aquilo era a única coisa que me
avisava de sua presença. O restante de seu corpo estava completamente
acobertado pelo breu.
A presença na floresta ficou mais
opressora. O vento começou a soprar por entre as árvores, e mais pareciam
sussurros que elas trocavam entre si em uma linguagem desconhecida. Senti
aquele impulso de me mover em direção ao corvo novamente, dessa vez muito mais
forte, superando a vontade de fugir. Inconscientemente, larguei o rifle,
deixando-o em meio à lama ao meu lado. Algo controlava meu corpo; meus pés
começaram a se movimentar para a frente lentamente, enquanto meu olhar ainda
imergia no vermelho, incapaz de se desviar.
De repente, o chão sumiu sob meus
pés, e meu corpo foi impelido para baixo enquanto eu despencava de um barranco.
Despenquei de barriga para cima na lama, com diversos cortes ardendo onde eu os
raspara em galhos e uma dor lacinante na coluna. Para meu desespero, ao tentar
mexer minhas pernas, não consegui. Forcei-me para cima com os braços, porém não
consegui mais do que ficar sentado; o esforço me deixou exausto.
Um grasnir chamou minha atenção e
levantei a cabeça para encarar aqueles olhos vermelhos novamente. Estavam
próximos, agora. O corvo havia alçado voo e pousado a alguns metros de
distância. O medo tomou conta de mim e tentei me arrastar com os braços para
trás, porém minhas costas se chocaram com uma parede de terra. O corvo me
encurralara entre ele e o barranco.
Seus olhos faiscavam; eu podia ver o
desejo neles e a maldade. Eram tão, tão vermelhos. Quase pareciam sangue.
Ele emitiu aquele som horrendo
novamente e começou a se aproximar. Talvez tenham sido alguns segundos, talvez
séculos, até que ele estivesse sobre mim. Não conseguia sentir seu peso em
minhas pernas, mas suas garras certamente se apoiavam ali. O vento sussurrou
mais alto e o vermelho ficou mais intenso.
Gritei; foi minha única reação.
Berrei o mais alto que podia, incapaz de me levantar e correr, quando senti o
corvo dilacerando meu braço com seu bico afiado e arrancando um pedaço de
carne. Só uma ave comum, Joe. Desafios
vão te meter em problemas, Joe. Mais um pedaço. Mais um. Corta, engole, corta, engole. Está gostoso? Qual é o meu gosto, Senhor Corvo?
A dor era tão lacinante que comecei a
rir. Um ataque de histeria me acometeu, enquanto o bico retirava um naco de
carne atrás do outro, o cheiro de sangue me dominava e aqueles olhos vermelhos
não me deixavam escapar.
A
refeição está de seu agrado, Senhor Corvo?
Quando eu achava que aquilo nunca
acabaria, a ave parou. Suas pupilas vermelhas se fixaram nas minhas mais uma vez,
e o mundo ficou vermelho, depois preto. O bico se abriu e dele veio um
ensurdecedor grasnar, seguido por um nauseante plop e mais dor. Dor, dor, dor no meu rosto, pior do que antes.
O mundo deixou de ser preto, e minha
visão estava estranha e um tanto nublada pela dor. Algo estava incompleto, e
então eu vi aquela bola branca presa ao bico do corvo, pequenos fios sagrentos
ainda ligados a uma de suas extremidades.
Meu próprio globo ocular me olhou de
volta.
Estou
olhando meu olho. Haha, meu olho me olha, eu olho meu olho. Corvo preto, de
olhos vermelhos, vai comer o meu olho?
Corvo
preto, corvo bonito, meu olho sangrento está em seu bico.
Corvo
vermelho, preto sangrento, bonito olho.
Corvo
olho, bonito sangrento, vermelho preto...
Corvo
sangrento, olho bonito, coma meu olho...
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