O Reflexo no Espelho
19:47
| Postado por
Thais Pampado
I
Se Beatrice tivesse que escolher
uma palavra para descrever a aparência do espelho, seria comum. Suas dimensões eram grandes o bastante para que a
refletissem de corpo inteiro, mas apesar de seu tamanho a moldura nada tinha de
especial; era de simples madeira lisa, já um pouco envelhecida pelo tempo, sem
qualquer adorno ou entalhe. Era como qualquer outro espelho que poderia se
encontrar em qualquer outro antiquário da cidade. A mulher o achou no Relíquias do Tempo, nos fundos da loja,
um tanto escondido por trás de alguns tecidos e pilhas de quinquilharias.
Pensou, enquanto pagava um preço demasiado baixo pelo objeto, que aquele
espelho comum combinaria com o resto
da decoração comum do seu quarto.
E o levou para casa naquele
mesmo dia.
II
- Aquele bastardo, asqueroso,
pervertido!
A porta emitiu um estrondo ao
ser batida com demasiada força. Beatrice entrou em casa em um rompante,
resmungando de raiva enquanto atirava as pastas que trouxera do trabalho sobre
o sofá da sala e se dirigia ao seu quarto.
- Quem ele pensa que é, poderia
conseguir uma promoção se colocasse essa boquinha para um bom uso,
francamente! Chefe ou não, não passa de um pervertido.
A mulher jogou-se em sua cama,
com os cabelos espalhando-se sob si. A visão de Jenkins, seu chefe no
departamento de relações públicas na empresa em que trabalhava, não saía de sua
cabeça. O homem já passava dos cinquenta anos, tinha os cabelos rareando e sua
cara era tão redonda quanto sua enorme barriga. Além de ser rude todas as
manhãs, tratando-a como uma inútil mesmo que ela trabalhasse até não aguentar
mais, agora vinha com essa! Como se ela fosse se rebaixar a tal ponto.
-
Eu o odeio!
Bufando, Beatrice sentou-se na
cama. Encarou o espelho que havia adquirido alguns dias atrás, recém-colocado
exatamente à frente de onde estava, do outro lado do quarto. Ele mostrava uma
mulher de vinte e três anos, de longos e espessos cabelos ruivos, pele pálida
salpicada por sardas e olhos verdes que brilhavam de raiva. Encarou seu
reflexo, idêntico a ela em todos os detalhes e movimentos... até que sua imagem
se levantou e pareceu andar em sua direção.
Beatrice piscou com força e
sacudiu a cabeça. Continuava sentada na cama, sentia a maciez do colchão sobre o qual estava. Ainda assim, seu eu
refletido estava de pé, aproximando-se. Quando quase parecia poder saltar para
fora do espelho, parou.
- Sabe o que quer fazer, Bea.
A voz era a de Beatrice, porém
vinha da imagem e soava como um eco. A mulher na cama tinha os olhos
arregalados. Isso é uma alucinação. O dia
hoje realmente me estressou.
- Por que não pede demissão?
Era aquilo que pairava em sua mente com grande
frequencia. Ver-se livre de Jenkins era uma ideia tentadora, porém...
- Não posso pedir demissão. Dependo desse emprego,
sem ele perco a casa, perco tudo. Não conseguirei ganhar um salário maior em
nenhum outro lugar.
Estou
discutindo com uma alucinação. Preciso descansar.
Beatrice sabia que deveria ir tomar um banho e se
deitar, mas estava compelida a responder àqueles ecos. Pareciam tão reais, e a
cada palavra parecia estar extravasando um pouco da raiva que havia acumulado
desde que começara a trabalhar com Jenkins. Talvez sua mente simplesmente
estivesse precisando de uma maneira de se livrar de tudo aquilo.
Seu reflexo deu uma risada, que soou como um sopro de
vento frio.
- Está parecendo que tem medo de Jenkins. Não quer
enfrentá-lo. Talvez, ah, talvez você esteja pensando na proposta dele, ah, sim.
Uma promoção, ganharia mais dinheiro, e em troco de tão pouco, não é mesmo? Só
teria que virar a putinha de Jenkins.
- Nunca faria isso! Eu o odeio! Quero vê-lo morto!
Beatrice berrou essa última parte, e avançou em fúria
em direção à imagem que caçoava dela. Parou com o punho a centímetros de dar um
soco em sua face, lembrando-se de repente de que aquilo era um espelho, e que
ela com certeza estava imaginando coisas. Ouviu uma risada ecoar mas, depois de
piscar algumas vezes, o que viu foi o seu próprio reflexo, com o peito se
movendo para cima e para baixo com sua respiração ofegante, o punho erguido e
uma expressão de ódio no rosto, exatamente a posição em que se encontrava.
Relaxou o corpo e deu as costas para o espelho. Um bom banho e minha cama. É disso que eu preciso.
III
No dia seguinte,
Beatrice acordou se sentindo mais relaxada do que nunca. Uma espécie de leveza
a acometia, como se um grande peso tivesse sido retirado de suas costas. Embora
não soubesse a exata origem daquela sensação, estava feliz por ela. Há tempos
não se sentia assim.
Arrumou-se como fazia todos os dias, tomando uma
grande xícara de café antes de sair para o trabalho. O encontro com Jenkins na
tarde anterior ainda pairava em sua mente, porém não deixava aquela lembrança
amargar sua manhã.
O escritório ficava a apenas meia hora de distância
de sua casa. Dirigia pelas ruas conhecidas que indicavam estar próxima de seu
destino quando encontrou um estranho tumulto. Carros estavam congestionados e
várias pessoas corriam para um local alguns metros à frente; já havia uma
pequena multidão parada observando o pequeno prédio cinza que era tão conhecido
por Beatrice – a sede da empresa em que trabalhava.
Descendo de seu próprio carro quando este se
encontrou impossibilitado de avançar, a mulher aproximou-se para ver o que
estava acontecendo. Notou que diversos carros de polícia cercavam a área, e o
grupo de curiosos era impedido de se aproximar da entrada do prédio por uma
fita amarela. Atrás dela, dois oficiais uniformizados tentavam acalmar e
dispersar a multidão.
Bea empurrou, deu cotoveladas e levou alguns
xingamentos até chegar à fita de segurança. Tentou chamar a atenção de um dos
policiais.
- O que está acontecendo? Eu trabalho aqui! – gritou
o mais alto que podia, porém sua voz se perdeu em meio à todas as outras que
faziam o mesmo. Um flash de luz disparou ao seu lado, e ao se virar deparou com
um repórter de câmera na mão. Cutucou-o e ele se virou para ela com uma
expressão carrancuda.
- Que foi? Não tá
vendo que eu tô trabalhando?
- E eu gostaria de estar também, mas parece que a
polícia interditou o meu prédio. – Beatrice respondeu sarcasticamente,
detestando o ar de presunção do homem. – Sabe o que houve?
De má vontade, ele respondeu.
- Assassinato. Encontraram um cara morto a facadas no
segundo andar. Eu vi quando o corpo foi retirado. Já estava dentro do saco, mas
o cara com certeza era grande. – de
repente, pareceu relembrar o que fazia ali, e da oportunidade que tinha de
obter informações. – Você disse que trabalha aqui. Sabe quem era? Conhecia?
Pode imaginar quem fez isso?
Beatrice gelara por dentro ao escutar as primeiras
palavras do repórter. Não pode ser.
Ignorando a torrente de perguntas que ele lançava em
sua direção, esgueirou-se para longe do tumulto, e antes que percebesse já
estava correndo até seu carro.
Não, não, não.
É uma coincidência, só isso. Jenkins não pode estar morto.
Havia se esquecido da alucinação da noite anterior,
mas agora se lembrava nitidamente. Aquela sensação de leveza sumira,
substituída por algo mais frio, como se algo nojento estivesse se espalhando em
suas veias.
Ela havia dito as palavras. Quero vê-lo morto.
Mas não queria realmente,
havia falado aquilo por falar, em um momento de raiva. Não era? Ela nunca mataria
ninguém, e proferira aquilo basicamente para si mesma. Não havia mais ninguém
no quarto para ouvi-la.
Havia o
espelho, e a pessoa lá dentro.
Beatrice retomou o caminho para a casa pisando fundo
no acelerador. O medo retorcia seu estômago em nós. Repetia diversas vezes alucinação, coincidência, alucinação, coincidência como um mantra. Tentava em
não pensar naquela imagem e em seus ecos, no modo como parecera real. Seria capaz de sair do espelho?
Estacionou às pressas na garagem de sua casa. Suas mãos
tremiam enquanto ela tentava acertar a chave na fechadura da porta de entrada,
mas esta por fim se abriu. A luz entrava pelas janelas da sala, recaindo sobre
os poucos móveis, porém o local parecia estar mais escuro do que nunca. O ar
pareceu estar suspenso com um silêncio quase palpável, com qualquer vestígio de
som do lado de fora abafado quando a porta se fechou.
Beatrice andou lentamente em direção ao seu quarto.
Parou em frente à porta ligeiramente entreaberta, respirando fundo e temendo o
que quer que pudesse encontrar do outro lado. Depois de segundos que pareceram
séculos, seus dedos se estenderam para a madeira e a empurraram.
Sua cama estava como a havia deixado naquela manhã,
com os lençois bem arrumados. Virou-se, e lá estava o espelho, como ontem. Lá
estava ela, cabelos, sardas, olhos.
Mas seus olhos eram vermelhos e suas mãos estavam
sujas de sangue.
Beatrice recuou, berrando, até que atingiu a cama e
caiu sentada sobre ela. Estendeu suas mãos à sua frente em desespero, vendo-as
limpas como sempre, porém seu reflexo as tinha rubras.
- Não quer encarar seu trabalho, Beatrice? –
perguntou o espelho.
- Eu não fiz nada, não fiz nada – repetiu a mulher.
Seu coração pulava descompassado, e parecia ter engolido um bloco de gelo.
Sentia como se o ar a estivesse pressionando por todos os lados, pesado.
- Fez, sim. Era muito fraca para fazer sozinha, mas
você me pediu e eu te ajudei, não vê? – a Bea-imagem agachou-se e retirou um
emaranhado de roupas de baixo da cama. Depositou-as exatamente ao lado de onde
a Beatrice real estaria sentada, enquanto esta fechava os olhos com força,
lágrimas escorrendo pelo seu rosto. – Olhe, Beatrice. Olhe o que você fez.
Lentamente, a mulher abriu os olhos e baixou-os para
a cama. Um soluço estrangulado saiu por sua garganta quando viu as roupas que
reconhecia como suas amontoadas ali, com diversas manchas daquele vermelho
escuro. E, aninhada em seu meio, reluzia uma faca de cortar carne com a lâmina
ensanguentada.
- Está livre agora. – ecoou o espelho. - E eu diria
que seu ódio foi um ótimo alimento. Desde que prenderam meu espírito nesse
espelho, é difícil encontrar uma especiaria como tal, há anos não consigo nada
tão forte... tenho que agradecer por ter me retirado daquele antro de
velharias. Posso estar presa nesse espelho há muito tempo, mas não quer dizer
que me considere uma relíquia.
Aquela risada maligna encheu o aposento, e Beatrice
encarou seu reflexo.
-O que me fez fazer? – pretendia que sua voz saísse
como um desafio, mas mais pareceu um choramingo.
- Nada que você não quisesse. Disse que queria ver
Jenkins morto, ele está morto. Queime
essas roupas e se livre da faca e pronto, não haverá mais problemas. Você está
sem seu chefe pervertido, e eu repus minhas energias. Ambas tivemos nossos
desejos atendidos, todos saem felizes.
Era como se Beatrice tivesse seus olhos verdes
grudados nos vermelhos do monstro no espelho. Aquele não era seu reflexo, sabia
agora, nem uma alucinação. Aquele espelho não era comum.
Ela havia matado um homem. Meu Deus, era uma
assassina! Culpa do espelho. Maldito o
dia em que decidi entrar naquela loja!
A polícia a encontraria, descobriria a verdade, ela
devia ter olhos de assassina agora. Tinha suas mãos sujas de morte.
O desespero crescia dentro de Beatrice. O
monstro-reflexo alargava cada vez mais o seu sorriso.
- Não tente lutar contra isso, Bea. Sabe que, bem lá
no fundo, você está satisfeita. Está feliz que tenha me encontrado.
- NÃO!
Beatrice levantou-se de um salto, agarrando a faca em
meio às roupas, e avançou com fúria para cima do espelho. Um flash de
recognição passou por sua mente, e se viu naquele mesmo correr furioso, o metal
em suas mãos, com um homem gordo gritando por misericórdia à sua frente...
A faca atingiu o espírito em meio aos olhos, e tudo
se apagou.
IV
- Moça, tem certeza que não aceita nenhum tipo de
pagamento? Esse espelho deve ter te custado caro. Trabalhamos com orgulho e
garanto que podemos lhe pagar o que pedir.
O senhor que falava tinha a voz roufenha, e devia
estar próximo de seus setenta anos. Estranhava aquela jovem mulher ruiva que
adentrara seu antiquário oferecendo um grande espelho antigo, emoldurado em
madeira, por nada em troca. Além disso, não tirara os óculos escuros mesmo
depois de entrar na loja.
Ela lhe abriu um sorriso doce.
- Não se preocupe. Tenho este espelho há tempo
demais. Acho que é hora de me separar dele. – a mulher riu. - Tenho certeza que
a Velhas Lembranças encontrará um
novo dono para ele.
O senhor hesitou por um instante, mas então
consentiu.
- É muito gentil. Se é assim, aceitarei o espelho.
Posso mandar buscá-lo esta tarde, se for possível.
- Seria ótimo.
A mulher lhe passou o endereço e, com mais um
sorriso, deixou a loja. Entrou em seu carro e dirigiu calmamente para sua casa.
Assim que chegou, dirigiu-se para o quarto, onde o grande espelho estava ainda
pregado à parede. Retirou os óculos escuros.
Seus olhos vermelhos encaram os verdes da mulher
refletida, que tinha as mãos cerradas em punho se agitando, como se tentasse
quebrar o espelho de dentro para fora.
- Olá, Beatrice.
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Muito bom!
ResponderExcluirÉ um conto que nos leva a concluir que a protagonista não tinha saída mesmo, como nas boas histórias de terror. O maior medo não é o monstro ou o escuro, mas nossa própria besta interior, representada no monstro do espelho. Parabéns!
Olá, indiquei seu blog lá no meu, através de selos literários. O endereço é: http://www.oguardiaodehistorias.com.br/
ResponderExcluirAbraços!