O Círculo dos Filhos


            O blog Psychobooks está com um grande concurso cultural valendo vários kits de livros para comemorar seu aniversário. Em um desses kits, a tarefa é escrever um texto utilizando os títulos dos seis livros que o compõe: A Filha da Minha Mãe e Eu, O Reino, O Livro do Amanhã, Bruxos e Bruxas, Manuscritos do Mar Morto e Tipo Destino.
      Quando fui escrever o texto, que a princípio era para ter uns dois parágrafos, acabei me empolgando e ele se estendeu muito mais do que o esperado, tanto que acabei usando só parte dele para o concurso. De qualquer maneira, achei interessante compartilhar o texto todo no blog! Boa leitura!

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     Naquela noite, a Clareira Sagrada era iluminada pela pálida luz da Lua Cheia que brilhava no céu. Uma leve bruma tomava conta do lugar, através da qual era possível ver numerosos vultos, vestindo longas capas pretas, os capuzes erguidos escondendo seus rostos. Eles formavam um círculo silencioso. Em seu meio, havia apenas o toco de uma árvore há tempos cortada, no qual repousava um grosso livro de aspecto antigo.
     Apesar do frio que fazia, nenhuma das figuras parecia  se importar. Imóveis, elas mantiveram sua formação por um longo tempo, conforme a Lua subia no céu, até alcançar seu ponto mais alto, com o brilho incidindo diretamente sobre a clareira. Nesse momento, uma das pessoas se destacou do círculo, aproximando-se do livro no centro do local. Ela abaixou seu capuz, revelando um homem de aparência altiva, com cabelos negros lisos até os ombros e olhos azuis. Os outros membros do círculo imitaram sua ação, descobrindo seus rostos, que variavam desde jovens até idosos. Todos apresentavam a mesma coloração de olhos que o homem ao centro.
     Este, após todos terem revelado sua identidade, encostou suavemente a mão direita na capa do livro.
     - Irmãos e irmãs – proclamou, e sua voz ecoou no silêncio da noite – Bruxos e bruxas do reino de Saagha, filhos da Natureza e irmãos de sua Filha Suprema, a Lua Cheia, nos reunimos aqui hoje para celebrar a junção de mais um ao nosso círculo. Aproxime-se, Elero, filho da Natureza.
     Um garoto franzino, aparentemente o mais jovem dali, destacou-se dos outros e dirigiu-se ao centro da clareira, parando do lado oposto ao homem com uma expressão de ansiedade. O livro repousava entre os dois.
     - Seja bem-vindo, Elero, ao Círculo dos Bruxos de Saagha. Eu, Artros, protetor do Círculo, convido-o a prestar seu juramento para o Livro do Amanhã, nosso guia sagrado e guardião dos Manuscritos do Mar Morto, o registro dos destinos dos filhos da Natureza. – disse o homem, retirando a mão que repousava sobre o livro e em seguida agarrando a mão direita do garoto. – Você está pronto para se unir a nós?
     - Estou – afirmou Elero, solene.
     Sua mão foi colocada sobre o livro, que emitiu um brilho esverdeado. Os integrantes remanescentes na formação do círculo se aproximaram e deram-se as mãos de maneira a fechar os buracos deixados por Artros e Elero. Sob a luz da lua e a bruma, as pessoas pareciam tremeluzir.
     - Ó, Natureza, poderosa mãe que protege o reino de Saagha, e grande Lua Cheia, que coloca seu olhar sobre nós – entoou Artros, com a voz repentinamente mais profunda. Seus olhos, assim como o de todos os outros, voltaram-se para o céu. – Concedam a Elero sua confiança e deixem que ele siga seu destino, determinado desde o nascimento, de unir-se ao Círculo dos Filhos.
     Dito isso, Artros retornou para seu lugar no Círculo, juntando suas mãos às dos outros. O brilho que emanava do livro ficou mais forte, e um vento fraco soprou por entre as árvores. A tensão entre os presentes pareceu aumentar. Todos os olhares agora se fixavam no jovem ao centro da clareira. Ao falar, as palavras de Elero carregavam o peso da responsabilidade que ele assumia.
     - Eu, Elero, juro ser fiel ao Círculo dos Filhos e usar meus poderes com sabedoria. Tomo todos aqui presentes como irmãos, e juro que por eles darei minha vida. Juro defender o Círculo, e caso o mal sobrevenha e reste apenas a Natureza, a Mãe da qual vim e a qual sirvo, a Lua Cheia, a Filha da minha Mãe, e eu, juro que ainda assim não cessarei minhas obrigações e cumprirei meu destino até o último de meus dias.
     Ao término da fala do garoto, o vento aumentou de intensidade, enquanto Elero sentia o poder aumentando dentro de si. As pessoas ao seu redor ergueram os braços para o alto, entoando um canto para os céus.
     - Grande Mãe Natureza, imponente Lua Cheia, nós lhes oferecemos nosso poder!
     A floresta, antes silenciosa, parecia estar viva; as árvores pareciam se mover ao redor do círculo, e a luz que incidia sobre a clareira pareceu ficar ainda mais forte. Elero fechou os olhos, a mão ainda posta firmemente sobre o Livro do Amanhã, e repetiu junto aos outros:
     - Grande Mãe Natureza, imponente Lua Cheia, nós lhes oferecemos nosso poder!
     E, de repente, tudo cessou. As vozes se calaram, o vento parou de soprar, e o livro não mais emitia brilho algum. Por alguns instantes, todos mantiveram um ar solene, que indicava o fim da cerimônia. Então, lentamente, os bruxos e bruxas foram se aproximando de Elero para lhe dar as boas-vindas, agora em tons bem mais descontraídos. O garoto parecia afogueado com toda a atenção.
     Artros se aproximou do jovem e colocou a mão sobre seu ombro.
     - Seja bem-vindo ao Círculo, irmão.
     Elero sorriu.
     - É muito bom finalmente me juntar a vocês, irmão. – por fim, toda sua animação e orgulho pareceram transparecer em seu rosto, e, abandonando toda a postura séria, ele acrescentou – Tipo... destino melhor que esse não tem!
     Artros riu do jovem bruxo e em seguida afastou-se, deixando Elero usufruir da atenção de ser o mais novo membro do Círculo dos Filhos. 

Oceano



O azul estendia-se até os pontos mais longínquos do horizonte. As ondas erguiam-se majestosamente, impondo sua força sobre os mares. Até que chegava à praia, pequena, somente um pouco d’água espalhando-se pela areia morna e acariciando os pés daqueles que a admiravam. O som que chegava aos seus ouvidos transmitia um sentimento indescritível.

A garota virou-se, privando-se alguns segundos daquela visão linda que era o oceano, para em vez disso olhar para o garoto ao seu lado, cujos cabelos loiros eram açoitados pelo vento.

- Eu te amo – sussurrou, juntando sua mão à dele e voltando o olhar para a imensidão azul.

E a resposta veio junto ao barulho das ondas.



“Eu também te amo.”

As últimas folhas do outono

             
     -Eu quero criar um jardim. O nosso jardim.
     O pequeno portão de ferro rangeu quando foi aberto. Pedaços de tinta descolaram das grades e colaram-se à mão do homem que o abrira, porém este não fez esforço para limpá-los. Chamava-se Pedro. Ele era uma figura alta e magra, e usava um sobretudo escuro para se proteger do frio daquela manhã de outono. Seus olhos, de um azul extremamente claro, pareciam escurecer frente à paisagem que se encontrava à sua frente.
     Naquele espaço, havia os restos de um jardim. Pedro se lembrava de como ele era antes: cheio de cores, os aromas das flores preenchendo o ar, a grama macia cobrindo o chão. E os risos dela sempre ecoando. De Marissa.
     Foi ela que teve a ideia de eles criarem um jardim. Ambos gostavam de mexer com plantas, e aquele seria o lugar deles. Quase todos os dias iam para lá. Acompanharam as flores surgirem e tomarem conta do espaço, as mudas de árvores ficarem mais altas que eles e começarem a dar frutos, as folhas caírem no outono e ressurgirem.
     Costumavam deitar-se na grama, conversando sobre bobagens, se beijando e rindo. Marissa era uma pessoa alegre; seu riso era fácil e estava sempre pronto a sair de seus lábios. Todos os dias, enquanto cuidavam do jardim, Pedro ficava ouvindo o riso de Marissa.
     Sempre achou que aquele riso era uma parte do jardim. Ele estava entranhado nas folhas, nas flores e nos frutos; era o que lhes conferia a vida e a beleza.
     E então, Marissa foi embora.
     Levou consigo seu riso, e Pedro ficou sozinho. Sabia que ela nunca mais retornaria ao jardim deles, e por muito tempo também não voltou lá. Até que, um dia, retornou, na esperança de encontrar algumas lembranças esquecidas.
     Foi nessa manhã fria, a última do outono, que se deparou com as flores murchas, a grama ressecada e as árvores vazias com suas folhas amareladas caídas no chão. Não havia mais cor, e o aroma no ar era agora o de abondono e tristeza; o jardim se tornara um cemitério.
     Pedro andou por entre os resquícios do que um dia fora um lugar de felicidade, sentindo as folhas estalarem sob seus pés. Seus olhos eram fendas de dor ao observar a marca da perda de Marissa. Ele quase podia ouvir o fantasma de seus risos ecoando, algo perdido para sempre. Ele tinha razão; o riso de Marissa, sempre ecoando, era o que dava vida ao jardim. Sem ele, não havia mais nada.
     Pedro parou em frente ao que um dia fora uma macieira, onde algumas poucas folhas resistiam em um galho mais baixo. Estavam já amareladas, fracas. O homem aproximou-se, e com um puxão arrancou-as dali. Segurou-as firmemente na mão, sentindo-as estalarem e se quebrarem entre seus dedos.
     Então foi embora do jardim, desta vez para sempre, deixando apenas uma trilha com as últimas folhas do outono atrás de si.



Tempo Contado


Ele vivia no relógio.
Tic-tac. Tic-tac.
Às sete da manhã acordava.
Às sete e meia, saía para o trabalho.
Os olhos sempre se voltando para os ponteiros no relógio de pulso.
Tic-tac. Tic-tac.
Almoço ao meio dia.
Duas horas da tarde, voltava ao escritório.
O relógio na parede ritmando seus movimentos.
Às cinco terminava o expediente.
Tic-tac. Tic-tac.
O programa a que gostava ia ao ar às oito da noite.
O jantar ficava pronto às nove.
Errou na comida? Algo instantâneo.
Nada de atrasos.
Às dez ia para a cama.
Tic-tac. Tic-tac.
Caía no sono no mesmo instante.
Nada de atrasos.
Tic-tac. Tic-tac.
Afinal, era só mais um mecanismo do relógio.



O Reflexo no Espelho



   I

                Se Beatrice tivesse que escolher uma palavra para descrever a aparência do espelho, seria comum. Suas dimensões eram grandes o bastante para que a refletissem de corpo inteiro, mas apesar de seu tamanho a moldura nada tinha de especial; era de simples madeira lisa, já um pouco envelhecida pelo tempo, sem qualquer adorno ou entalhe. Era como qualquer outro espelho que poderia se encontrar em qualquer outro antiquário da cidade. A mulher o achou no Relíquias do Tempo, nos fundos da loja, um tanto escondido por trás de alguns tecidos e pilhas de quinquilharias. Pensou, enquanto pagava um preço demasiado baixo pelo objeto, que aquele espelho comum combinaria com o resto da decoração comum do seu quarto.
                E o levou para casa naquele mesmo dia.

II

                - Aquele bastardo, asqueroso, pervertido!
                A porta emitiu um estrondo ao ser batida com demasiada força. Beatrice entrou em casa em um rompante, resmungando de raiva enquanto atirava as pastas que trouxera do trabalho sobre o sofá da sala e se dirigia ao seu quarto.
                - Quem ele pensa que é, poderia conseguir uma promoção se colocasse essa boquinha para um bom uso, francamente! Chefe ou não, não passa de um pervertido.
                A mulher jogou-se em sua cama, com os cabelos espalhando-se sob si. A visão de Jenkins, seu chefe no departamento de relações públicas na empresa em que trabalhava, não saía de sua cabeça. O homem já passava dos cinquenta anos, tinha os cabelos rareando e sua cara era tão redonda quanto sua enorme barriga. Além de ser rude todas as manhãs, tratando-a como uma inútil mesmo que ela trabalhasse até não aguentar mais, agora vinha com essa! Como se ela fosse se rebaixar a tal ponto.
                - Eu o odeio!
                Bufando, Beatrice sentou-se na cama. Encarou o espelho que havia adquirido alguns dias atrás, recém-colocado exatamente à frente de onde estava, do outro lado do quarto. Ele mostrava uma mulher de vinte e três anos, de longos e espessos cabelos ruivos, pele pálida salpicada por sardas e olhos verdes que brilhavam de raiva. Encarou seu reflexo, idêntico a ela em todos os detalhes e movimentos... até que sua imagem se levantou e pareceu andar em sua direção.
                Beatrice piscou com força e sacudiu a cabeça. Continuava sentada na cama, sentia a maciez do colchão sobre o qual estava. Ainda assim, seu eu refletido estava de pé, aproximando-se. Quando quase parecia poder saltar para fora do espelho, parou.
                - Sabe o que quer fazer, Bea.
                A voz era a de Beatrice, porém vinha da imagem e soava como um eco. A mulher na cama tinha os olhos arregalados. Isso é uma alucinação. O dia hoje realmente me estressou.
                - Por que não pede demissão?
                Era aquilo que pairava em sua mente com grande frequencia. Ver-se livre de Jenkins era uma ideia tentadora, porém...
                - Não posso pedir demissão. Dependo desse emprego, sem ele perco a casa, perco tudo. Não conseguirei ganhar um salário maior em nenhum outro lugar.
                Estou discutindo com uma alucinação. Preciso descansar.
                Beatrice sabia que deveria ir tomar um banho e se deitar, mas estava compelida a responder àqueles ecos. Pareciam tão reais, e a cada palavra parecia estar extravasando um pouco da raiva que havia acumulado desde que começara a trabalhar com Jenkins. Talvez sua mente simplesmente estivesse precisando de uma maneira de se livrar de tudo aquilo.
                Seu reflexo deu uma risada, que soou como um sopro de vento frio.
                - Está parecendo que tem medo de Jenkins. Não quer enfrentá-lo. Talvez, ah, talvez você esteja pensando na proposta dele, ah, sim. Uma promoção, ganharia mais dinheiro, e em troco de tão pouco, não é mesmo? Só teria que virar a putinha de Jenkins.
                - Nunca faria isso! Eu o odeio! Quero vê-lo morto!
                Beatrice berrou essa última parte, e avançou em fúria em direção à imagem que caçoava dela. Parou com o punho a centímetros de dar um soco em sua face, lembrando-se de repente de que aquilo era um espelho, e que ela com certeza estava imaginando coisas. Ouviu uma risada ecoar mas, depois de piscar algumas vezes, o que viu foi o seu próprio reflexo, com o peito se movendo para cima e para baixo com sua respiração ofegante, o punho erguido e uma expressão de ódio no rosto, exatamente a posição em que se encontrava. Relaxou o corpo e deu as costas para o espelho. Um bom banho e minha cama. É disso que eu preciso.


III

No dia seguinte, Beatrice acordou se sentindo mais relaxada do que nunca. Uma espécie de leveza a acometia, como se um grande peso tivesse sido retirado de suas costas. Embora não soubesse a exata origem daquela sensação, estava feliz por ela. Há tempos não se sentia assim.
                Arrumou-se como fazia todos os dias, tomando uma grande xícara de café antes de sair para o trabalho. O encontro com Jenkins na tarde anterior ainda pairava em sua mente, porém não deixava aquela lembrança amargar sua manhã.
                O escritório ficava a apenas meia hora de distância de sua casa. Dirigia pelas ruas conhecidas que indicavam estar próxima de seu destino quando encontrou um estranho tumulto. Carros estavam congestionados e várias pessoas corriam para um local alguns metros à frente; já havia uma pequena multidão parada observando o pequeno prédio cinza que era tão conhecido por Beatrice – a sede da empresa em que trabalhava.
                Descendo de seu próprio carro quando este se encontrou impossibilitado de avançar, a mulher aproximou-se para ver o que estava acontecendo. Notou que diversos carros de polícia cercavam a área, e o grupo de curiosos era impedido de se aproximar da entrada do prédio por uma fita amarela. Atrás dela, dois oficiais uniformizados tentavam acalmar e dispersar a multidão.
                Bea empurrou, deu cotoveladas e levou alguns xingamentos até chegar à fita de segurança. Tentou chamar a atenção de um dos policiais.
                - O que está acontecendo? Eu trabalho aqui! – gritou o mais alto que podia, porém sua voz se perdeu em meio à todas as outras que faziam o mesmo. Um flash de luz disparou ao seu lado, e ao se virar deparou com um repórter de câmera na mão. Cutucou-o e ele se virou para ela com uma expressão carrancuda.
                - Que foi? Não vendo que eu trabalhando?
                - E eu gostaria de estar também, mas parece que a polícia interditou o meu prédio. – Beatrice respondeu sarcasticamente, detestando o ar de presunção do homem. – Sabe o que houve?
                De má vontade, ele respondeu.
                - Assassinato. Encontraram um cara morto a facadas no segundo andar. Eu vi quando o corpo foi retirado. Já estava dentro do saco, mas o cara com certeza era grande. – de repente, pareceu relembrar o que fazia ali, e da oportunidade que tinha de obter informações. – Você disse que trabalha aqui. Sabe quem era? Conhecia? Pode imaginar quem fez isso?
                Beatrice gelara por dentro ao escutar as primeiras palavras do repórter. Não pode ser.
                Ignorando a torrente de perguntas que ele lançava em sua direção, esgueirou-se para longe do tumulto, e antes que percebesse já estava correndo até seu carro.
                Não, não, não. É uma coincidência, só isso. Jenkins não pode estar morto.
                Havia se esquecido da alucinação da noite anterior, mas agora se lembrava nitidamente. Aquela sensação de leveza sumira, substituída por algo mais frio, como se algo nojento estivesse se espalhando em suas veias.
                Ela havia dito as palavras. Quero vê-lo morto.
                Mas não queria realmente, havia falado aquilo por falar, em um momento de raiva. Não era? Ela nunca mataria ninguém, e proferira aquilo basicamente para si mesma. Não havia mais ninguém no quarto para ouvi-la.
                Havia o espelho, e a pessoa lá dentro.
                Beatrice retomou o caminho para a casa pisando fundo no acelerador. O medo retorcia seu estômago em nós. Repetia diversas vezes alucinação, coincidência, alucinação, coincidência como um mantra. Tentava em não pensar naquela imagem e em seus ecos, no modo como parecera real. Seria capaz de sair do espelho?
                Estacionou às pressas na garagem de sua casa. Suas mãos tremiam enquanto ela tentava acertar a chave na fechadura da porta de entrada, mas esta por fim se abriu. A luz entrava pelas janelas da sala, recaindo sobre os poucos móveis, porém o local parecia estar mais escuro do que nunca. O ar pareceu estar suspenso com um silêncio quase palpável, com qualquer vestígio de som do lado de fora abafado quando a porta se fechou.
                Beatrice andou lentamente em direção ao seu quarto. Parou em frente à porta ligeiramente entreaberta, respirando fundo e temendo o que quer que pudesse encontrar do outro lado. Depois de segundos que pareceram séculos, seus dedos se estenderam para a madeira e a empurraram.
                Sua cama estava como a havia deixado naquela manhã, com os lençois bem arrumados. Virou-se, e lá estava o espelho, como ontem. Lá estava ela, cabelos, sardas, olhos.
                Mas seus olhos eram vermelhos e suas mãos estavam sujas de sangue.
                Beatrice recuou, berrando, até que atingiu a cama e caiu sentada sobre ela. Estendeu suas mãos à sua frente em desespero, vendo-as limpas como sempre, porém seu reflexo as tinha rubras.
                - Não quer encarar seu trabalho, Beatrice? – perguntou o espelho.
                - Eu não fiz nada, não fiz nada – repetiu a mulher. Seu coração pulava descompassado, e parecia ter engolido um bloco de gelo. Sentia como se o ar a estivesse pressionando por todos os lados, pesado.
                - Fez, sim. Era muito fraca para fazer sozinha, mas você me pediu e eu te ajudei, não vê? – a Bea-imagem agachou-se e retirou um emaranhado de roupas de baixo da cama. Depositou-as exatamente ao lado de onde a Beatrice real estaria sentada, enquanto esta fechava os olhos com força, lágrimas escorrendo pelo seu rosto. – Olhe, Beatrice. Olhe o que você fez.
                Lentamente, a mulher abriu os olhos e baixou-os para a cama. Um soluço estrangulado saiu por sua garganta quando viu as roupas que reconhecia como suas amontoadas ali, com diversas manchas daquele vermelho escuro. E, aninhada em seu meio, reluzia uma faca de cortar carne com a lâmina ensanguentada.
                - Está livre agora. – ecoou o espelho. - E eu diria que seu ódio foi um ótimo alimento. Desde que prenderam meu espírito nesse espelho, é difícil encontrar uma especiaria como tal, há anos não consigo nada tão forte... tenho que agradecer por ter me retirado daquele antro de velharias. Posso estar presa nesse espelho há muito tempo, mas não quer dizer que me considere uma relíquia.
                Aquela risada maligna encheu o aposento, e Beatrice encarou seu reflexo.
                -O que me fez fazer? – pretendia que sua voz saísse como um desafio, mas mais pareceu um choramingo.
                - Nada que você não quisesse. Disse que queria ver Jenkins morto, ele está morto.  Queime essas roupas e se livre da faca e pronto, não haverá mais problemas. Você está sem seu chefe pervertido, e eu repus minhas energias. Ambas tivemos nossos desejos atendidos, todos saem felizes.
                Era como se Beatrice tivesse seus olhos verdes grudados nos vermelhos do monstro no espelho. Aquele não era seu reflexo, sabia agora, nem uma alucinação. Aquele espelho não era comum.
                Ela havia matado um homem. Meu Deus, era uma assassina! Culpa do espelho. Maldito o dia em que decidi entrar naquela loja!
                A polícia a encontraria, descobriria a verdade, ela devia ter olhos de assassina agora. Tinha suas mãos sujas de morte.
                O desespero crescia dentro de Beatrice. O monstro-reflexo alargava cada vez mais o seu sorriso.
                - Não tente lutar contra isso, Bea. Sabe que, bem lá no fundo, você está satisfeita. Está feliz que tenha me encontrado.
                - NÃO!
                Beatrice levantou-se de um salto, agarrando a faca em meio às roupas, e avançou com fúria para cima do espelho. Um flash de recognição passou por sua mente, e se viu naquele mesmo correr furioso, o metal em suas mãos, com um homem gordo gritando por misericórdia à sua frente...
                A faca atingiu o espírito em meio aos olhos, e tudo se apagou.

IV

                - Moça, tem certeza que não aceita nenhum tipo de pagamento? Esse espelho deve ter te custado caro. Trabalhamos com orgulho e garanto que podemos lhe pagar o que pedir.
                O senhor que falava tinha a voz roufenha, e devia estar próximo de seus setenta anos. Estranhava aquela jovem mulher ruiva que adentrara seu antiquário oferecendo um grande espelho antigo, emoldurado em madeira, por nada em troca. Além disso, não tirara os óculos escuros mesmo depois de entrar na loja.
                Ela lhe abriu um sorriso doce.
                - Não se preocupe. Tenho este espelho há tempo demais. Acho que é hora de me separar dele. – a mulher riu. - Tenho certeza que a Velhas Lembranças encontrará um novo dono para ele.
                O senhor hesitou por um instante, mas então consentiu.
                - É muito gentil. Se é assim, aceitarei o espelho. Posso mandar buscá-lo esta tarde, se for possível.
                - Seria ótimo.
                A mulher lhe passou o endereço e, com mais um sorriso, deixou a loja. Entrou em seu carro e dirigiu calmamente para sua casa. Assim que chegou, dirigiu-se para o quarto, onde o grande espelho estava ainda pregado à parede. Retirou os óculos escuros.
                Seus olhos vermelhos encaram os verdes da mulher refletida, que tinha as mãos cerradas em punho se agitando, como se tentasse quebrar o espelho de dentro para fora.
                - Olá, Beatrice.

O Homem






            O Homem sempre vinha durante a noite.
            Na primeira vez em que ele apareceu, o relógio marcava duas horas da madrugada. Miguel tinha sete anos; era pura inocência e curiosidade em seu pequeno envoltório de menino. O quarto era fracamente iluminado pela luz da lua que entrava pelo vidro da janela fechada, e os objetos lançavam sombras em ângulos estranhos pelas paredes. O Homem surgiu de repente, uma sombra mais densa destacando-se das outras sem emitir som algum. Não era possível ver seu rosto ou qualquer outra parte de seu corpo, pois o mesmo estava coberto por um longo manto preto; no entanto, sua presença foi acompanhada por um sopro de vento gelado que não poderia ter vindo do lado de fora.
            Miguel assustou-se com a aparição repentina, mas não tentou afastá-la nem gritou, o que talvez tenha sido uma prova de sua ingenuidade infantil. O menino apenas apertou mais os cobertores em torno de si e ficou espiando o desconhecido. Alguns minutos se passaram e nenhum deles se moveu. O ar estava tenso e carregado com uma espécie de antecipação – como se algo importante estivesse para acontecer. E estava, só que Miguel não sabia disso.
Se soubesse, e soubesse o que aquilo iria desencadear, não teria deixado o Homem falar.
            - Tens meu corpo, garoto?
            A voz que saiu por debaixo do capuz era desgastada e áspera, como se fosse utilizada uma lixa para raspar a garganta. Ao responder, a voz de criança de Miguel soou extremamente aguda, embora ainda fosse pouco mais do que um sussurro.
            - Qual o seu nome? E por que você fala estranho?
            - Nome eu tinha quando era vivo, não o tenho mais. Tens meu corpo, garoto?
            Sem entender, Miguel continuou em silêncio, os olhos fixos na sombra à sua frente, os dedinhos agarrados firmemente ao cobertor. O Homem aproximou-se da cama e o menino encolheu-se ainda mais com a súbita intensificação do frio.
            - Estás no local onde meu corpo me foi tomado – queimado, torturado, mutilado. Terás de devolvê-lo, de uma maneira ou de outra.
            Dito isso, o Homem desapareceu, deixando para trás um menino com lágrimas de medo escorrendo pela face.

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            O Homem retornou exatamente um ano após sua primeira aparição. Dessa vez, Miguel estava dormindo, porém o frio fez com que despertasse. Quando percebeu aquela figura em seu quarto novamente, seu primeiro reflexo foi preparar-se para gritar, mas ao inspirar sua garganta se fechou e ele começou a engasgar.
            - Permaneça calado.
            A ordem foi pronunciada pela voz rouca com força e ódio. O menino voltou a ser capaz de respirar, mas obedeceu. Seu corpo foi tomado por tremores involuntários, seus dentes rangiam, as unhas se cravaram na palma da mão. Os olhos se fecharam e ele tentou se convencer de que aquele era um pesadelo. Não era real, não era real, não era real...
            O Homem postou-se ao lado de Miguel. A parte de seu manto que corresponderia ao braço se ergueu e cobriu os olhos do garoto, cujo corpo imediatamente enrijeceu. Dois olhos vermelhos como fogo surgiram no Homem.
            Ao acordar na manhã seguinte, Miguel estava cego.

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            O Homem vinha todos os anos, sempre na mesma data. Os olhos vermelhos foram apenas o começo da cobrança prometida por sua primeira visita. Na terceira vez que ele apareceu, tocou os ouvidos de Miguel, que perdeu a audição. Na quarta, foi a boca, e o garoto perdeu a voz. Na quinta e na sexta, perdeu o movimento dos braços, e nas próximas duas, ambas as pernas ficaram paralisadas. Quando o Homem surgiu pela nona vez, o menino inocente de sete anos não era nada além de uma casca na forma de um garoto de quinze, funcional apenas pelo bombear do coração e pelas ondas cerebrais.
            A chegada foi pontuada pelo costumeiro frio, mas trouxe também um cheiro putrefato de carne em decomposição. Não havia mais manto, somente um amontoado de carne e pedaços de pele carcomidos por vermes, que vinha para uma última visita.
            O Homem esticou os dedos pegajosos e tocou o peito do garoto.
            A risada rouca do morto-vivo ecoava no quarto quando o coração de Miguel parou de bater.

O Corvo


Desde que eu era pequeno, caçar era meu hobby favorito. Meu pai me apresentou a essa atividade assim que decidiu que eu tinha idade o bastante para manejar um rifle – eu estava com sete anos, na época. Marco Dolan era um homem robusto, sempre com a barba por fazer e cujas roupas sempre exalavam um cheiro característico, uma mistura de terra e cigarro. Eu sempre sabia que meu pai estava por perto somente pelo olfato, antes mesmo de vê-lo ou ouvi-lo. Ele era um homem rígido. Sabia impor suas regras na casa, e depois das primeiras surras por desobediência, aprendi a não contrariá-lo. Contanto que eu andasse na linha, ele era como qualquer outro pai, ansioso por passar ao filho a tradição dos homens da família – a caça. Eu, logicamente, expressava tanta ansiedade quanto ele, e sempre o admirava quando ele chegava de uma caçada, com suas botas e roupas sujas de terra e grama, o rifle seguro entre os dedos e os animais abatidos (eram aves, normalmente) dentro de sacas ensanguentadas.
            Foi uma alegria para mim, então, quando Marco disse que eu estava pronto. Ganhei meu próprio rifle, cuja maneira de usar ele me ensinou em pouco tempo. Logo, eu o acompanhava durante as temporadas – sempre íamos aos arredores do Lago Cristal, em uma floresta que não ficava tão longe da fazenda onde morávamos.
            Essa era a grande diferença entre eu e meu pai. Aquela invariabilidade me entediava. Queria ir a lugares diferentes, desconhecidos; queria uma aventura ou um desafio. A única vez em que me atrevi a expressar aquelas ideias, tomei um tapa e um conselho:
            - Desafios vão te meter em problemas, Joe. Escute o que eu digo, garoto. Chega de ideias; caçar no Cristal já é aventura o suficiente para você.
            As coisas continuaram assim por muitos anos. Mesmo quando me tornei independente e deixei de morar na fazenda, nunca me atrevi a caçar fora daquele lago, até nas vezes em que ia sem meu pai. Não ousei desobedecê-lo; é difícil perder certos hábitos. Foi no ano de 1996, no entanto, que Marco Dolan sofreu o ataque cardíaco que o matou.
            A notícia foi um choque para mim. Passei alguns meses em profundo luto, mas então comecei a enxergar aquilo de uma outra maneira. Eu estava livre, agora. Livre para as aventuras e os desafios que há tanto me haviam sido negados. Era hora de começar a viver.
            Foi então que decidi tirar um ano para me dedicar inteiramente à caça. Pedi demissão no trabalho. Eu tinha uma pequena fortuna acumulada, fruto de anos de trabalho duro e poupança, que serviriam para me sustentar durante aquele período. Comprei equipamentos novos, mapas de lugares remotos e distantes, pesquisei na internet por points que me permitissem manter uma atividade constante durante o ano inteiro. Alguns dias depois de minha decisão, eu estava em meu carro, levando comigo apenas uma pequena mala com algumas roupas, o equipamento e algum dinheiro.
            Ah, como aquilo era maravilhoso! Viajando constantemente, hospedando-me em hotéis e pousadas em locais remotos, enfrentando matas e pântanos. Não me detinha somente em aves, e minhas presas passaram a ser as mais variadas. Uma vez cheguei a matar um jacaré. Me enchi de orgulho, e não pude deixar de pensar em meu velho pai e seu conselho... ele estava completamente errado. O Lago Cristal não era aventura o suficiente para mim. Isso, sim, era aventura de verdade!
            Eu já estava há alguns meses naquelas viagens quando reparei no corvo pela primeira vez. Talvez ele estivesse me acompanhando desde o início, porém eu nunca o havia visto realmente até aquele dia. Eu estava na Floresta Galis, espreitando por entre ramos em busca de algum animal desavisado, quando um brilho vermelho me chamou a atenção nos galhos mais altos de uma árvore um pouco à frente. Lentamente, com o mínimo de ruído possível, direcionei meu rifle naquela direção e estreitei o olhar para enxergar melhor. A floresta era densa, e um tanto quanto escura, portanto levou um certo tempo até eu realmente divisar o que estava vendo.

            Era um corvo, porém não podia ser um corvo comum. Ele era pelo menos duas vezes maior do que a ave normal, e apesar disso suas penas negras fundiam-se com o cenário de maneira a deixá-lo quase invisível. Um arrepio me percorreu a espinha quando notei seus olhos, que não eram negros, mas de um vermelho intenso – era o que havia me chamado a atenção inicialmente. Estavam voltados para mim, embora eu fizesse o máximo para não emitir o menor ruído. Segurava o rifle firmemente em minhas mãos, e deveria ter atirado. Porém, eu não conseguia me concentrar em nada além daqueles olhos que me encaravam. Pareciam... inteligentes, quase malévolos. Como alguém que está desejando, esperando algo. Havia alguma força de atração neles, hipnotizante e aterrorizante ao mesmo tempo. Eu queria saber o que era, mas também queria me virar e sair correndo. Enfrentava esse dilema quando um estalo quebrou meu transe. O corvo soltou um grasnido alto e rouco e levantou vôo, enquanto eu me virava em direção ao som, com o coração aos pulos.
            Era um pequeno cervo, que provavelmente havia pisado em algum galho caído e o quebrado, emitindo aquele estalo. Ao perceber toda aquela movimentação, no entanto, ele imediatamente partiu correndo, antes mesmo de eu me recuperar o bastante para mirar.
            Eu estava trêmulo e ofegante, como se houvesse corrido uma maratona. Dei uma última olhada para cima, mas não encontrei mais aqueles olhos vermelhos e senti uma pontada de alívio. Decidi retornar ao hotel e encerrar o dia mais cedo. Aquele corvo me deixara inquieto, e o melhor a fazer seria descansar.
            Assim que saí da floresta e me encontrei em local aberto, sob a luz do sol, minha mente começou a duvidar do que eu vira. Devo estar muito cansado. Posso ter imaginado o bicho, estava escuro. Ou então pode ser apenas uma espécie de corvo que eu não conheço, maior e de olhos vermelhos. Só uma ave comum.
            Durante os quinze minutos de carro até o hotel, repeti aquilo para mim mesmo, de modo que ao chegar em meu pequeno quarto alugado, já havia me convencido de que nada de anormal acontecera. Tomei um banho e me sentei à janela para observar o crepúsculo antes de ir para a cama. Tinha uma longa viagem no dia seguinte.
            Aquela noite, tive pesadelos com olhos vermelhos de uma grande ave preta, seu bico afiado sujo de sangue. Acordei com um grito, suado, sob o som de uma intensa chuva que martelava as janelas. Somente alguns minutos depois, após tomar um copo d’água, consegui de fato me acalmar. Eram três e vinte da madrugada. Decidi ignorar o sonho – aquilo era um medo irracional, uma coincidência, não relacionada com o acontecido da floresta. Virei-me de lado decidido a dormir novamente.
            Quando acordei na manhã seguinte, o vento ainda assobiava, embora a chuva houvesse se reduzido a uma leve garoa. Pensei que, se o tempo ruim permanecesse por muito mais, talvez atrapalhasse minha próxima caçada, porém foi com renovada energia que entrei em meu carro rumo à próxima floresta; que chovesse! Seria um desafio novo, afinal.
            Foi enfrentando algumas pancadas de água um pouco mais intensas, intercaladas com aquela garoa fina, que cheguei na Pousada do Sol ao cair da noite. Era um local aconchegante, tipicamente interiorano, embora um tanto quanto vazio e com aspecto de que não havia muito movimento. Aquela era uma área bastante isolada, e espantava-me o fato de a Pousada sobreviver por ali.
            Fui atendido por um senhor todo enrugado, quase raquítico, com ralos cabelos brancos. Sua voz soava tão desgastada quanto ele parecia.
            - Boa noite, meu jovem. Posso ajudá-lo?
            - Gostaria de alugar um quarto por uma noite. O mais barato.
            - Um instante, já pegarei a chave para você. Me desculpe a pergunta, mas o que faz em um lugar como esse com essa chuva? Raramente temos clientes nessa época do ano.
            - Vou para a Floresta Antiga, amanhã. Sou caçador.
            O velho parou por um instante com a mão estendida para um painel de chaves atrás do balcão, e voltou seus olhos para mim. Seu olhar fez com que eu me sentisse inquieto novamente; as pupilas vermelhas do corvo passaram em um flash por minha mente. Tão rapidamente quanto ele se virara, no entanto, voltou sua atenção para as chaves e aquela estranha sensação desapareceu.
            - Ora, meu jovem, não devia caçar com esse tempo. A Floresta Antiga tem um terreno muito perigoso, muitos barrancos e rochas em alguns trechos. Já tivemos alguns... acidentes bem desagradáveis por lá.
            Havia um tom contido em sua voz, como se houvesse algo por trás daquilo que ele falava. Não dei muita importância. Eu estava atrás do perigo, não era esse o motivo de ter escolhido aquele lugar entre tantos na internet? Exibi um sorriso para meu atendente.
            - Eu sei. Tomarei cuidado. Estou acostumado com a mata.
            Ele suspirou e me estendeu uma pequena chave enferrujada.
            - Não com esta... – essas primeiras palavras saíram em um murmúrio – Mas já que você diz. Aqui está, quarto 65. São 40 reais. Pagamento só em dinheiro, por favor.
            Remexi em meu bolso e retirei dali algumas notas, que entreguei ao velho.
            - Muito obrigado.
            Deixei aquele estranho senhor no balcão e me retirei para o quarto. Era extremamente rústico, mas eu não procurava o luxo, então ele servia ao meu propósito. Como havia enfrentado a estrada durante o dia inteiro, não demorei a dormir.
            Não tive pesadelos essa noite, e acordei ao nascer do sol. A chuva havia parado, mas o céu ainda exibia um tom acinzentado salpicado por nuvens escuras. O café-da-manhã da Pousada já havia começado a ser servido – esses lugares sempre se adequavam aos horários daqueles que normalmente o frequentavam – e a comida era farta e deliciosa. Não vi o velho, somente um jovem rapaz que deveria ser seu ajudante; não poderia ter mais do que vinte anos. Não avistara nenhum outro hóspede quando finalmente entrei em meu carro, já vestido e preparado para a caça.
            Meia hora depois, estacionei em frente ao começo de uma floresta tão densa quanto aquela em que eu estivera dois dias antes. A Floresta Antiga era extensa, fechada e úmida; um local não muito conhecido e cujo terreno dificultoso impedia que muitos caçadores se aventurassem por ali. Quando li sobre ela em um site, sabia que era o local perfeito para mim. Apanhei meu rifle e, tomado por antecipação, adentrei a floresta.
            A primeira coisa que notei foi o cheiro abafado, de terra molhada e vida selvagem. Eu mal havia penetrado alguns metros quando a escuridão quase total me encobriu; agucei minha visão e os outros sentidos para poder me movimentar. As árvores pareciam se curvar para cima de mim com galhos retorcidos, e o solo úmido afundava maciamente sob minhas botas. Todo e qualquer som parecia ter sido abafado. O silêncio era sepulcral.
            Havia algo naquela floresta. Seu nome passava a fazer mais sentido: era como se houvesse uma presença, espreitando em cada canto, nas árvores, no chão e no ar, algo antigo, poderoso e atemporal.
            Não faço ideia de quanto tempo passei ali, sem ver nenhum indício de um animal para tomar como minha presa. Me locomovia devagar, devido à precariedade do solo sob meus pés. Perdi a noção das horas, sequer sabia se era dia ou noite naquela escuridão. Só havia eu, meus sentidos, e a floresta. A caça.
            E, então, eu o vi.
            Ele estava empoleirado da mesma maneira que antes; em uma árvore um pouco mais afastada. O vermelho de seus olhos parecia ainda mais forte dessa vez, e aquilo era a única coisa que me avisava de sua presença. O restante de seu corpo estava completamente acobertado pelo breu.
            A presença na floresta ficou mais opressora. O vento começou a soprar por entre as árvores, e mais pareciam sussurros que elas trocavam entre si em uma linguagem desconhecida. Senti aquele impulso de me mover em direção ao corvo novamente, dessa vez muito mais forte, superando a vontade de fugir. Inconscientemente, larguei o rifle, deixando-o em meio à lama ao meu lado. Algo controlava meu corpo; meus pés começaram a se movimentar para a frente lentamente, enquanto meu olhar ainda imergia no vermelho, incapaz de se desviar.
            De repente, o chão sumiu sob meus pés, e meu corpo foi impelido para baixo enquanto eu despencava de um barranco. Despenquei de barriga para cima na lama, com diversos cortes ardendo onde eu os raspara em galhos e uma dor lacinante na coluna. Para meu desespero, ao tentar mexer minhas pernas, não consegui. Forcei-me para cima com os braços, porém não consegui mais do que ficar sentado; o esforço me deixou exausto.
            Um grasnir chamou minha atenção e levantei a cabeça para encarar aqueles olhos vermelhos novamente. Estavam próximos, agora. O corvo havia alçado voo e pousado a alguns metros de distância. O medo tomou conta de mim e tentei me arrastar com os braços para trás, porém minhas costas se chocaram com uma parede de terra. O corvo me encurralara entre ele e o barranco.
            Seus olhos faiscavam; eu podia ver o desejo neles e a maldade. Eram tão, tão vermelhos. Quase pareciam sangue.
            Ele emitiu aquele som horrendo novamente e começou a se aproximar. Talvez tenham sido alguns segundos, talvez séculos, até que ele estivesse sobre mim. Não conseguia sentir seu peso em minhas pernas, mas suas garras certamente se apoiavam ali. O vento sussurrou mais alto e o vermelho ficou mais intenso.
            Gritei; foi minha única reação. Berrei o mais alto que podia, incapaz de me levantar e correr, quando senti o corvo dilacerando meu braço com seu bico afiado e arrancando um pedaço de carne. Só uma ave comum, Joe. Desafios vão te meter em problemas, Joe. Mais um pedaço. Mais um. Corta, engole, corta, engole. Está gostoso? Qual é o meu gosto, Senhor Corvo?

A dor era tão lacinante que comecei a rir. Um ataque de histeria me acometeu, enquanto o bico retirava um naco de carne atrás do outro, o cheiro de sangue me dominava e aqueles olhos vermelhos não me deixavam escapar.
A refeição está de seu agrado, Senhor Corvo?
Quando eu achava que aquilo nunca acabaria, a ave parou. Suas pupilas vermelhas se fixaram nas minhas mais uma vez, e o mundo ficou vermelho, depois preto. O bico se abriu e dele veio um ensurdecedor grasnar, seguido por um nauseante plop e mais dor. Dor, dor, dor no meu rosto, pior do que antes.
O mundo deixou de ser preto, e minha visão estava estranha e um tanto nublada pela dor. Algo estava incompleto, e então eu vi aquela bola branca presa ao bico do corvo, pequenos fios sagrentos ainda ligados a uma de suas extremidades.
Meu próprio globo ocular me olhou de volta.
Estou olhando meu olho. Haha, meu olho me olha, eu olho meu olho. Corvo preto, de olhos vermelhos, vai comer o meu olho?
Corvo preto, corvo bonito, meu olho sangrento está em seu bico.
Corvo vermelho, preto sangrento, bonito olho.
Corvo olho, bonito sangrento, vermelho preto...
Corvo sangrento, olho bonito, coma meu olho...

Quem escreve

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Thais Pampado. 20 anos. Escritora e estudante de Produção Editorial. Apaixonada por livros e por escrever. Lê praticamente qualquer gênero, mas tem uma paixão especial por fantasia e YA.
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